Comida Saudável
Acrelândia 2012: Pão de inhame no Ramal do Remansinho - AM
Foi o Marcelo Urbano quem fez a propaganda do pão. Ele é pesquisador, coordenador de um grande projeto sobre malária na amazônia, professor titular do departamento de parasitologia do ICB na USP, e marido da Marly Cardoso, docente da faculdade de Nutrição da USP e coordenadora do projeto do qual participo lá no Acre. A casa, em Acrelândia, pertence aos dois e serve de ponto de apoio e alojamento para os pesquisadores de ambos os projetos. Frequentemente os dois grupos se encontram.
Quando estão na casa as duas turmas, uma fica em Acrelândia e outra parte às cinco da manhã para o Ramal do Remansinho, uma zona endêmica de malária no estado do Amazonas, fronteira com Rondônia e Acre. Marcelo me contou que algumas mulheres do ramal estavam fazendo pão, mas que era sempre um pão branco adocicado. Fez propaganda dos pães que eu vinha fazendo na casa com outros ingredientes e ficou combinado que eu iria até lá trocar experiências.
De Acrelândia, são cerca de 120 quilômetros, por uma BR 364 vergonhosamente emburacada e cinquenta quilômetros de estrada de barro escorregadio. Por isto os pesquisadores costumam sair tão cedo de casa. Antes de ir fazer o pão, porém, fomos com a Susana (enfermeira do projeto) a um aniversário, na casa da Ana. A menina Denise faria cinco anos, era domingo, dia de nossa folga, dia de passear. Na hora de sair, começou a chover muito, mas muito mesmo. O motorista Lúcio, chegou animado. Fernanda, minha companheira de projeto, e Susana estavam reticentes: com esta chuva o ramal estará intransitável, talvez não seja melhor desistirmos. Torci muito para Lúcio dizer o contrário, que daria pra ir assim mesmo. Foi o que ele fez. Entrou no Suzukinho e vamos embora! A festa era às três, saímos às duas e chegamos às cinco, quando grandes pedaços de bolo com recheio de cupuaçu e cobertura azul e cor-de-rosa-choque já estavam guardados num pote plástico.
Comemos o bolo, tomamos guaraná, e vimos a alegria da menina, com os lápis de cor e o caderno que levamos de presente, debruçada na cama iluminada pelas frestas entre as tábuas da parede. Saímos de lá levando abóbora (sempre ela!) e banana de presente, já na hora do mosquito da malária. Depois de muitas derrapagens e atoleiros no escuro do ramal, agora sem chuva mas ainda muita lama, chegamos no asfalto e ali, diante de buracos gigantescos a gente começa a achar que o ramal floresta adentro era o caminho mais seguro para se andar. Apesar das dificuldades, fiquei animada a voltar com mais tempo no último dia de viagem, para conhecer mais gente.
E assim foi. Um dia antes de nossa volta, Fernanda estava meio indisposta e por isto fui só com Suzana e o motorista Lúcio, que chegou todo arrumado, camisa amarela, contando muitas histórias do seu tempo de Susam (ele é microscopista), quando também trabalhou com malária. E ia me dizendo os nomes das árvores, das palmeiras, das flores, dos pássaros, dos rios, contando causos com macacos e castanhas, apontando no meio da mata a picada dos índios kaxarari (o nome do ramal é Mendes Júnior no primeiro trecho, por causa da construtora que fez um certo estrago por ali, no final da década de 80, mas também de Ramal do Índio, por causa da aldeia). Cinquenta quilômetros de estrada de barro são fichinha quando se pode ouvir bons causos.
No caminho, Susana às vezes pedia para parar, reconhecendo algumas pessoas que participam da amostragem da pesquisa. Aos poucos vou percebendo que malária é como gripe. Sempre tem alguém da família ou da vizinhança com malária. E lá corre Susana fazer entrevista e colher sangue para o projeto que, quem sabe um dia, resulte numa vacina.
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Inhame já descascado |
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Forno de tambor e mais inhame do lado, caso precisasse |
Tudo previamente combinado, Celmira nos recebeu ainda meio ressabiada. Cheguei sem tralha alguma, a não ser fermento seco e um potinho de gergelim que comprei em Acrelândia. A ideia era vê-la fazendo pão e talvez dar algumas dicas. Mas ela não quis arriscar e preferiu apenas ver como eu fazia o meu. De qualquer forma, deixou um inhame roxo (taro) colhido à porta da cozinha já descascado sobre uma bacia furada de tanto ariar. Não sabia que faria pão de inhame. Achei que tivessem ali abóboras, mas não. Cozinhamos o inhame até que ficasse bem molinho no fogão de lenha sob o rancho sem paredes que serve de cozinha e sala de visitas. Grudado ao fogão, o forno onde assaríamos o pão, feito pelo marido, de barro e tambor, com a madeira entrando pelo lado de fora.
Ao ver o inhame macio, derretendo, se transformando em purê antes de ser juntado à massa de pão, Celmira descobriu porque suas tentativas com aquele e outros ingredientes nunca davam certo. Ela ralava e adicionava o inhame, batata doce ou mandioca crus à massa e o pão ficava duro. Outra coisa que ela descobriu é que é sempre mais seguro diluir o fermento seco antes na água e não na farinha. Porque se há gordura entre os líquidos e ela entra em contato antes com os grânulos, eles ficam encapsulados e não agem nunca mais. Conclusão, a massa não cresce. E isto já havia acontecido várias vezes com ela. Mostrei também como grudar gergelim na massa.
Cobri com plástico a bacia de massa e fiquei conversando e especulando enquanto esperava crescer. Não estávamos sós, outras pessoas vieram ver como fazer o tal do pão que não era só branco. Rosemari, vizinha, estava com malária e veio assim mesmo, meio sem forças, com as duas crianças, Fernanda e Rafael. A filha casada de Celmira, Elisamara Patrícia, que mora ali perto, também chegou com uma alegria contagiante, sempre sorrindo. E ainda as outras filhas meninas Elisandra e Jamila, além do menino Emanoel.
Susana havia me deixado com Celmira, enquanto ia com o motorista visitar outras pessoas com malária em outros ramais (estradas de terra). Quando retornou, o pão crescia. Mas eu já havia ido com Celmira conhecer a floresta, ver algumas castanheiras encostando ao céu, os cogumelos que nasciam sob árvores caídas, a clareira na floresta onde cultivavam café, abacaxi, inhame, laranjas, mamões e limões. Já sabia um pouco sobre sua família e como a sua história representa a de quase todos que estão assentados ali, atraídos por terras fartas e baratas, desenvolvimento amazônico, promessa de futuro para os filhos, uma vida mais digna. O que não sabiam era sobre o tanto de malária que teriam que enfrentar, a eventual pistolagem de madeireiros e a submissão a eles se quiserem trabalho, a pouca terra para cultivo, o calor infernal, a dificuldade de locomoção (as crianças do ramal ainda não iniciaram as aulas, porque o ônibus não consegue atravessar o atoleiro da estrada), a falta de energia elétrica, de comunicação e tantas outras faltas. Ali vive gente que não tem nenhuma relação com a floresta, mas com a agricultura de subsistência. São migrantes que correm de um canto a outro neste país sem fim em busca de oportunidades. Perguntei para todos que encontrei: de onde você é? Um ou outro diz: sou do Paraná, sou de Santa Catarina. Mas, no geral, respondem algo assim: morei no Paraná, perdi toda a safra, me mudei pra Rondônia, vendi tudo, voltei pro Paraná, morei no Paraguai, passei um tempo em Mato Grosso, fui morar no Amazonas, perdi tudo porque tinha muita malária, consegui esta terra aqui e e aqui estou. Assim, sempre meio de passagem, como aquelas correntes maritimas que correm invisíveis sob um mar que só poucos conseguem ver.
Quando Susana voltou, Celmira foi cortar lenha para acender o forno. Enquanto isso, passou por ali Dona Leni, de bicicleta. Estava vindo de uma roça a 8 km, onde está trabalhando por dia, colhendo café. Veio ver se Celmira podia lhe emprestar um quilo de ração para galinhas, que quando fosse ao asfalto, lhe pagaria. Susana me conta que ela vive só com porco, gato, pato, cachorro e galinha. Adora bichinhos.
O pão cresceu. Dividi, modelei e coloquei na assadeira que Celmira untou com óleo. Quando o forno já estava bem quente, colocamos a forma e esperamos conversando mais um tanto. Antes disso, fomos convidados a almoçar. Celmira fez logo uns quatro franguinhos que não levou quase temperos. A pele do frango era amarela, a carne, firme e vermelha com cheiro leve de chamuscado, e a sensação era de estar no Paraná, no sítio do meu avô, e não na selva amazônica.
Antes de começarmos a fazer o pão, Celmira nos trouxe de aperitivo os miúdos do frango, moela, coração e fígado, para comermos com limão. E era tudo tão bom e tão fresco que eu desejei que houvesse não quatro mas uns dez frangos na panela. Porém, tenho autocontrole em relação a desejos e fiquei feliz de ter provado o resultado delicioso daquele gesto singelo.
Com os pães já assados, Celmira arrumou a mesa com uma garrafa térmica com café doce e copos de massa de tomate. As bananas arrumadas em harmonia com os riscos do pão foi ideia dela e eu não faria melhor. O pão ficou bem macio e parece que gostaram. Celmira disse que vai repetir com abóbora, mandioca, banana-da-terra.
Pão de inhame/ taro: misturei numa bacia um pacote de fermento de pão (10 g) com uma xícara e meia de água. Esperei dissolver o fermento e juntei 3 colheres (sopa) de açúcar, 1 de sal, 1 ovo, 4 colheres (sopa) de óleo e meio quilo (duas xícaras e meia) de purê de inhame frio (taro - cozido e espremido ainda quente). Misturei bem e fui juntando farinha de trigo branca, até resultar numa massa que dê pra sovar com a mão. Usei um quilo de farinha. Modelei uma grande bola, deixei na bacia e cobri com plástico. Quando dobrou de volume, dividi em quatro, modelei os pães, molhei, rolei sobre gergelim (se bem que sobre dois deles, apenas polvilhei farinha). Deixei crescer mais um pouco, fiz riscos com uma faca afiada e levei ao forno bem quente. Assou até ficar dourado.
Certeza de que mais trouxemos que deixamos. Suculentos limões rosa e mudas de inhame roxo que já plantei em Piracaia são só a parte material.
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