Come-se numa praia deserta
Comida Saudável

Come-se numa praia deserta


Na viagem a Florianópolis ficamos numa pousada à beira mar. Era só abrir o portão e dar de cara para o mar. Acordei no domingo assim que se fez luz e fui dar uma espiada. Naquele silêncio de gente ou motores (afinal, todos dormiam). Só um bem-te-vi aqui e acolá, um sabiá fazendo graça, uma garça lá longe e aquela música de vento e ondinha quebrando na areia gelada. Nada pra fazer além de olhar o barquinho com dois pescadores jogando e recolhendo a rede que parecia subir meio vazia. Além disso, restava passar os olhos na paisagem e descobrir o que teria ali para eu comer se aquela fosse a praia de uma ilha deserta. E eu, uma náufraga.

Serralhinha, serralha-brava ou pincel-de-estudante. Em saladas ou cozidinha na água do mar a Emilia sonchifolia é gostosa, enganaria a fome e ainda me protegeria graças aos flavonoides que contém. E, além de me suprir em muitas vitaminas (especialmente pró-vitamina A ou carotenoides) e minerais, ainda me serviria de remédio, já que tem atividade febrífuga e as folhas amassadas fazem ótima compressa para curar machucados na pele.
Serralha, serralha-branca, serralha-lisa: Estas ervinhas de nome Sonchus oleraceus estão por toda a parte. São ricas em óleos essenciais, taninos, substâncias amargas e também seriam usadas cruas ou em sopinha com caldo do mar. Refogada em óleo de peixe e temperada com o sal marinho, receberia ainda, para perfumar e enfeitar, umas bolinhas de pimenta-rosa ou aroeira.
A mesma serralha em variedade pigmentada com antocianinas - talvez tenha que ver com o PH do solo. Certamente este pigmento protegerá meu coração no lugar do vinho tinto que não beberei. Faria com ela e as folhas de outras cores e formatos salada verde variada. Quando for primavera, talvez complementem e alegrem o prato algumas flores amarelas do cacto.
Dente de leão, amargosa, chicória-silvestre. É sempre uma felicidade encontrar por aí o Taraxacum officinale, pois contém taraxicina, um princípio amargo que poderá, quem sabe, proteger meu fígado das ervas venenosas que experimentarei. Contém ainda taninos, carotenóides, colina e bastante potássio, que eu vou precisar para não amolecer. Se puder conseguir algum óleo das ostras, refogarei suas folhas nela, pingando algumas gotas de água do mar.


Mentruz, mentruz-rasteiro, mastruço, mastruz. De todas as folhinhas, a mais saborosa. A Coronopus didymus tem sabor de folhas de mostarda. Farei com ela uma caminha para acolher os mariscos que comerei. E talvez ainda usarei para um caldo com os mesmos. Ou rechearei os peixes que conseguir pescar. Entrará também na salada com todas as outras folhas. Se tiver uma gripe é com as suas folhas expectorantes que vou sarar. Farei um xarope macerando-as na gosma do cacto.

Espinafre-da-Nova Zelândia. É o mesmo que compramos nas feiras. Diferente do espinafre verdadeiro, o europeu do Popaye, a Tetragonia expansa faz os mesmos papeis. Nem sabia que nascia espontaneamente assim na praia. Evitarei comê-lo cru por causa do excesso de ácido oxálico, mas aproveitarei em tudo quanto é sopa com frutos do mar, que me dará o ferro que ele tem mas não dispõe. As conchinhas aí na foto ao lado dele deu a dica do preparo.
Urumbeba, mondururu ou palmatória: encontraria aqui uma ótima fonte energética, pois a Opuntia monacantha dá estes frutos docinhos e suculentos ricos em carboidratos. E mesmo na penúria, uma sobremesinha vai bem. As raquetes (as "folhas") suculentas e ligeiramente ácidas também são comestíveis e hidratantes. Cortarei em quadradinhos com uma faca de escamadas, enfeitarei com uma bolinha de aroeira e servirei no palitinho, ops, no espinho dela. De entrada.
Aroeira-da-praia, aroeira-vermelha, aroeira-pimenteira, pimenta-rosa. Há duas espécies parecidas, a Schinus molle, com folhas pontiagudas e estas de folhas na forma de duas lentes grudadas e cortadas ao meio - Schinus lentiscifolius. Os frutos de ambas têm as mesmas aplicações na cozinha, como tempero. Então, usaria para isto - temperar postas de peixe que comerei grelhadas na lenha resinosa da própria aroreira (a seiva poderá ser usada como antiséptico caso eu tenha uma fratura ou coisa assim).

Jerivá, baba-de-boi, coquinho-jerivá, jeribá. Com os frutos do Syagrus romanzoffiana me abastecerei de energia, pois são ricos em açúcar e passarei o tempo chupando a polpa grudenta à espera de algum socorro. Se demorar, arrumarei tempo para quebrar os coquinhos e tentar tirar deles alguma gordura. Com as folhas, construirei minha choupana e farei meu colchão.

Juçara, içara, palmito-doce. Da Euterpe edulis não comerei o palmito único para me alimentar de seus frutos eternos. Farei "vinho" com a polpa como se fazem com os açaís e tomarei no café da manhã com camarões para garantir a energia do dia. Riquíssimo em antocianina como o vinhos de uva, me dará ainda ácidos graxos essenciais para aguentar invernos mais rigorosos.

Não, não vou ter coragem de matar o pássaro. Talvez não num primeiro momento ou enquanto houver fartura de peixes e frutos do mar. Mas, depois, quem sabe... Certamente nunca viverei nada parecido e espero que ninguém passe por isto nesta vida, mas não custa ir fazendo o inventário. De recursos comestíveis, até um barquinho chegar com socorro.




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