Os ovos pequenininhos das garnisés da Nina Horta
Comida Saudável

Os ovos pequenininhos das garnisés da Nina Horta


Elas já dormiam ontem à noite quando estive lá. Elas, as garnisés. E sabe-se lá empoleiradas onde. Mas seus ovinhos estavam sobre a mesa da Nina como pequenas joias admiradas por mãe e filha que não se animaram a comê-los. Dulce, meio cismada - seriam seguros? Nina queria continuar mimando os ovinhos translúcidos de marfim, como a galinha choca. Em pleno quintal de Pinheiros, todos os dias, dois ovinhos. Pequenininhos, pequenininhos. Que apareceram na crônica da Nina de ontem. Aí está para quem não lê a Folha:
Folha de S. Paulo - Ilustrada - 23 de setembro de 2010
NINA HORTA
As duas garnisés
Vamos e venhamos, a galinha é burra.
Mas é uma burrice deliciosa, como a burrice das loiras
POIS NÃO é que ganhamos duas garnisés. O galo não veio porque a vizinhança poderia reclamar com aquele brado matinal de "Aux armes, citoyens!" Pois foi mal chegarem e se instalaram. Galinha tem isso de bom, não há lugar no mundo onde não se acomodem, como se já vivessem ali há anos.Uma vez, aqui perto, um caminhão de leghorns caiu de banda com centenas delas cocoricando, alvoroçadas. Na frente do desastre, havia uma escola, dispararam para o pátio e, antes que chegasse a polícia ou o guincho, já se empoleiravam nos balanços, gangorras, bicavam os cantinhos do muro, examinavam com exagerada atenção o que imaginavam o ponto final da sua trajetória.
Vamos e venhamos, a galinha é burra. Mas é uma burrice deliciosa, como a burrice das loiras. Essas duas que ganhamos andam numa coreografia de balé. A castanha venera a pedrês e andam juntas, como rei e rainha, o rei sempre dois passos atrás indicando que é mandado. Se a pintada se jogar de um quinto andar, a outra vai junto sem piscar.
O assunto é comer e procurar comida, dia após dia e ir deitar bem cedo num sono de beleza. Nem descobrimos ainda onde dormem, parece que é lá em cima da jaboticabeira que dá seis frutos redondinhos e doces por ano. Não entendem absolutamente que moram lá fora e nós aqui dentro. Qualquer distração e já estão passeando na sala de jantar, espantando os corredores, bicando as luminárias baixas, raspando os pés no tapete. São totalmente insensíveis em matéria de amizade, querem morar conosco, contanto que não sejam assediadas nem obrigadas a sentar no nosso colo e assistir o horário eleitoral ou o futebol. Independentes que só elas.
Vocês já leram com atenção a carta de Pero Vaz de Caminha? Preciosa. Pois ele conta que os índios não se assustaram com novidade alguma. No entanto, ao verem uma galinha, se afastaram cheios de medo. Ora, podiam não conhecer uma galinha, mas conheciam aves sem-fim, de todas as cores e gritos. É claro que a galinha que lhes foi mostrada já viajava há 42 dias nos porões, piolhenta, magra, tonta do mar. Quando Pedro Álvares a pegou pelas pernas e a levantou, ela imediatamente deve ter começado o número que lhe é próprio, o escândalo, a gritaria desenfreada, o bater de asas, o coração disparado com a proximidade da panela.
Deve ser uma sabedoria vinda do tempo desses enormes animais extintos, pterodáctilos, dinossauros, não sei nada deles, quem é um ou outro, só sei que quando remontados por arqueólogos se parecem muito a galinhas gigantes. Por enquanto comeram as couves altas e as amoras caídas no chão, não gostam de miolo de pão, imagino que qualquer dia teremos a dieta da galinha, pois bicam o dia inteiro e estão umas Bündchen, pescoços e pernas alongados. E ovos, o inacreditável, todo dia botam ovinhos pequenos e transparentes, é tamanho o milagre que até desconfio de pintos ET como nos filmes de horror. Minha ideia primeira era dar a receita de uma canja de galinha, esse remédio potente contra tudo, até crises existenciais. Mas sempre se pode procurar alhures.
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