Por que a glicemia de jejum pode aumentar?
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Por que a glicemia de jejum pode aumentar?


Tenho recebido vários relatos do seguinte fenômeno:

1) A pessoa tinha glicemia de jejum normal;
2) A pessoa passa a seguir um estilo de vida low carb páleo;
3) A pessoa perde peso, e sente-se muito melhor;
4) Todos os exames melhoram, mas...
5) A glicemia de jejum AUMENTA;
6) Este aumento da glicemia de jejum é acompanhado de MELHORA ou manutenção dos valores de hemoglobina glicada (Hb A1c).

O que está acontecendo aqui? Bem, temos a explicação simples, e a explicação complexa. Se você não é da área biomédica ou interessado em muitos detalhes, pode parar de ler depois do próximo parágrafo.

a) Explicação simplificada: quando reduzimos significativamente os carboidratos da dieta, o corpo passa a usar a gordura como fonte de energia (por isso perde-se peso!). Mas alguns tecidos necessitam de certa quantidade de glicose (sistema nervoso central, rins, células do sangue), e o fígado produz esta quantidade. Ao mesmo tempo, os demais tecidos (músculos, gordura) deixam de utilizar esta glicose para que a mesma fique disponível para os órgãos que precisam. Isso faz com que, às vezes, a glicemia de jejum fique mais alta (pois os músculos estão usando gordura, e não glicose!) - mas o fato de a hemoglobina glicada continuar normal (ou mesmo baixar) prova que a sua glicemia, durante as 24 horas do dia, nos últimos meses, está mais BAIXA, na média, e não mais alta.

b) Explicação nerd: Quando em cetose - e, portanto, POR DEFINIÇÃO com insulina muito baixa (afinal, sem isso não se atinge a cetose nutricional), o metabolismo muda de oxidação de glicose para beta-oxidação de ácidos graxos. Estes ácidos graxos passam a ser liberados em grande quantidade por ação da lipase hormônio-sensível (enzima que, nos adipócitos, é fortemente inibida pela insulina - ergo, novamente, isso acontecerá com insulina BAIXA). O aumento de Ácidos Graxos Livres (Free Fatty Acids - FFA) na circulação é o responsável pela indução de resistência à insulina, especialmente nos músculos. Isto é fisiológico, isto é normal, e isto é necessário, pois em virtude da dieta low carb, a quantidade de glicose disponível (produzida por gliconeogênse) é limitada, e precisa ser reservada para as células que dependem de glicose (como é o caso das hemácias, que não têm mitocôndrias, e dos neurônios do SNC, que podem ser supridos apenas parcialmente por corpos cetônicos). Não é maravilhosamente elegante esse nosso metabolismo?


Assim, uma dieta low carb é terapêutica na reversão da resistência insulínica induzida pela hiperglicemia e pela disfunção mitocondrial em virtude do excesso de glicose. Mas ela produz OUTRO tipo de resistência à insulina: a resistência à insulina FISIOLÓGICA. Só que esta resistência fisiológica é transitória, induzida pelo aumento dos FFA na circulação, de modo a poupar a glicose para o cérebro e outros tecidos. Como ela ocorre no contexto de BAIXA insulina e BAIXA glicemia, não causa nenhum dano e se acompanha de Hb glicada normal.

CONTUDO, todos nós temos um aumento noturno do GH, que produz lipólise na madrugada para manter o corpo durante as horas de jejum - o que aumenta ainda mais os FFA, deixando os tecidos ainda mais resistentes à insulina neste horário; além disso, todos temos um aumento do cortisol no final da madrugada, antes de despertar, a fim de produzir um aumento da gliconeogênese para produzir a glicose sanguínea necessária para acordarmos após as várias horas de jejum noturno. Nos diabéticos tipo II, isto provoca o DAWN PHENOMENON (http://high-fat-nutrition.blogspot.com.br/2008/05/physiological-insulin-resistance-2-dawn.html), visto que eles têm resistência à insulina em virtude da doença. Só que estas pessoas têm resistência à insulina, insulina ALTA e hiperglicemia o dia inteiro, motivo pelo qual adoecem e suas Hb glicadas são ELEVADAS. Já quem faz low carb tem resistência à insulina FISIOLÓGICA, na qual o aumento da gliconeogênese matinal leva a um aumento TRANSITÓRIO da glicemia DE JEJUM, quando medida DE MANHÃ. Mas são valores próximos de 100, e não há hiperglicemia em nenhum momento durante o dia (diferente do diabético), o que é comprovado pela Hb glicada normal - indicando não haver dano por glicação de proteínas (o que não deveria surpreender ninguém por tratar-se de algo fisiológico - é tautológico, eu sei).

Outra consequência conhecida da resistência à insulina fisiológica é a alteração de testes de tolerância à glicose. A curva de 1 e 2 horas (após os 75g de glicose) pode dar valores alterados (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22669333) - cujos motivos já expliquei acima. Isso não é novidade, e está escrito nos livros mais importantes sobre low carb (é comum nos livros a recomendação de que, caso seu médico solicite uma curva glicêmica e vc estiver fazendo dieta cetogênica, você deverá comer carboidratos em abundância por no mínimo 3 dias para que seu teste "normalize", em outras palavras, para que você consiga metabolizar um caminhão de glicose na mesma velocidade média das pessoas que consomem cronicamente a dieta ocidental padrão). (Veja http://www.proteinpower.com/drmike/uncategorized/low-carb-caveat/). Isso significa que um "low carber" está em maior risco de desenvolver diabetes? Obviamente não (veja aqui e aqui)!

Veja, por exemplo, neste trecho do excelente livro Diet 101: The Truth About Low Carb Diets, um comentário sobre as distorções provocadas pelas dietas cetogênicas nas leituras de glicemia:


Espero ter esclarecido que embora o resultado dos exames pareça semelhante (níveis um pouco maiores de glicemia em jejum, curva glicêmica alterada), as CAUSAS e a interpretação destes resultados são completamente diferentes. E é por isso que podemos reverter frequentemente o DM tipo 2 com low carb; caso contrário, COMO uma estratégia que pioraria a resistência à insulina poderia tratar uma condição caracterizada, etiologicamente, por resistência à insulina??

O artigo abaixo mostra como qualquer dieta (low fat ou low carb) pode ajudar diabéticos, mas low carb (LCHF) é superior: o que importa é a Hb glicada e a glicemia pós prandial de 1 hora, e não a glicemia de jejum.

Diabetes Obes Metab. 2013 Aug 2. doi: 10.1111/dom.12191. [Epub ahead of print]

Two Diets with Different Hemoglobin A1c and Antiglycemic Medication Effects Despite Similar Weight Loss in Type 2 Diabetes.

Mayer SB, Jeffreys AS, Olsen MK, McDuffie JR, Feinglos MN, Yancy WS.

Division of Endocrinology, Metabolism and Nutrition, Department of Medicine, Duke University Medical Center, Durham, NC.

Abstract

We analyzed participants with type 2 diabetes (n = 46) within a larger weight loss trial (n = 146) who were randomized to 48 weeks of a low-carbohydrate diet (LCD; n = 22) or a low-fat diet + orlistat (LFD+O; n = 24). At baseline, mean BMI was 39.5 kg/m2 (SD 6.5) and HbA1c 7.6% (SD 1.3). Although the interventions reduced BMI similarly (LCD -2.4 kg/m2 ; LFD+O -2.7 kg/m2 , p = 0.7), LCD led to a relative improvement in hemoglobin A1c:-0.7% in LCD vs. +0.2% in LFD+O (difference -0.8%, 95% CI= -1.6, -0.02; p = 0.045). LCD also led to a greater reduction in antiglycemic medications using a novel medication effect score (MES) based on medication potency and total daily dose; 70.6% of LCD vs. 30.4% LFD+O decreased their MES by ≥50% (p = 0.01). Lowering dietary carbohydrate intake demonstrated benefits on glycemic control beyond its weight loss effects, while at the same time lowering antiglycemic medication requirements.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:
  • Valores um pouco mais altos de glicemia de jejum são comuns e esperados em dietas cetogênicas;
  • Desde que a hemoglobina glicada (HbA1c) esteja normal e a glicemia 1 hora pós-prandial fique abaixo de 120, isto não é problema;
  • Ainda assim, o fato é que dietas cetogênicas podem produzir resistência à insulina - embora de natureza fisiológica;
  • Não sei - e penso que ninguém sabe - qual a melhor estratégia no longo prazo (décadas) para reduzir a resistência à insulina, mas penso que não seria uma dieta cetogênica. Vejo uma dieta cetogênica mais como uma intervenção terpêutica para emagrecimento e controle de síndrome metabólica. Minha impressão é a de que, no longo prazo, o ideal seja uma dieta paleo low carb, com até 100g de carboidratos (páleo) por dia - na qual a quantidade de FFA circulantes diminuiria, assim como a necessidade de gliconeogênese, mas os níveis de insulina ainda permaneceriam baixos - o melhor de dois mundos.



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