Piracuí. Bolinho de mandioca com piracuí e sopa de piracuí no leite de coco
Comida Saudável

Piracuí. Bolinho de mandioca com piracuí e sopa de piracuí no leite de coco


Ganhei um pouco de piracuí do Luca Fanelli, que também é do Slow Food São Paulo. Ele é historiador, italiano, representa uma ONG de seu país e se embrenha por aí para trabalhar com comunidades ribeirinhas. Uma hora está no Vale do Ribeira, outra, lá na foz do Uruará.
Já ela, a farinha de peixe ou piracuí (do tupi: pira = peixe + cuí = farinha) que ganhei, veio do Município de Prainha, no Pará, especificamente da comunidade de pescadores de Vira-Sebo, com longa tradição na produção desta farinha feita ainda com métodos tradicionais.
Por ser um produto artesanal, a piracuí está sujeita a toda sorte de contaminações caso não seja feita com todo o cuidado higiênico necessário. Mas, segundo Luca, pescadores e pescadoras desta comunidade além de fazê-la com o maior capricho e cuidado para manter a qualidade, ainda faz uso de boas práticas de manejo para preservar o meio ambiente. E, como ele está divulgado o produto, quem quiser encomendar ou saber mais sobre o produto, é só falar com ele: [email protected]
Naquela região, a farinha é feita normalmente com acari (Lipossarcus pardalis), mas pode ser feito com outros peixes como o tamuatá, por exemplo. O peixe, ainda fresco, é cozido ou assado, livre de sua carapaça (o acari e o tamuatá são cascudos), e a carne é desfiada, descartando partes não desejadas como restos de sangue, gorduras (que deixa o produto rançoso) e espinhas. Só então vai para tachos de barro ou fornos abertos para secar sem queimar. Mexendo, sempre mexendo, até ficar tudo bem seco. Passa-se por peneira, esfria e pode ser guardado por meses a fio.
É uma ótima provisão proteica para os meses sem pesca e seu feitio evita qualquer desperdício de pesca excessiva na época de abundância. Enquanto 100 g de carne fresca de acari tem cerca de 18 g de proteína , a mesma quantidade de piracuí tem cerca de 78 g de proteína. Uma imensidão de proteínas de ótima qualidade biológica (com todos aminoácidos essenciais), pronta para substituir carnes e outros produtos protéicos.
Sem contar que é uma delícia, com sabor de peixinhos secos japoneses, sem gosto de gordura, ranço, nem muito sal. E é prático e versátil, afinal é leve, dispensa geladeira, pode ser usado como complemento nutricional para crianças na merenda escolar, por exemplo, e se adapta numa infinidade de preparos.
Parece que no Vale do Ribeira ainda há produção em pequena escala, mas já esteve presente entre os indígenas, em todo o Brasil, como se vê abaixo, nos relatos dos viajantes, extraídos do Arquivo Ernani Silva Bruno, Equipamentos da casa brasileira: usos e costumes, do Museu da Casa Brasileira.
(Referindo-se à alimentação dos habitantes de certas partes do país)"Nalguns lugares prepara-se com o peixe assado uma espécie de farinha alimentícia (Piracuí), para o que se tiram as espinhas de peixe assado, pisa-se num almofariz e põe-se a massa à secar em vaso de barro."
1868/1871 CANSTATT, Oscar. Brasil, a Terra e a Gente (1868). Rio de Janeiro, Irmãos Pengetti Editores, 1954. p. 126
(Referindo-se às índias Apiacás) "As mulheres [...] põem o peixe a cozer, e quando o há em abundância assam-no em pratos de terracota; fazem-no secar e socam-no com as espinhas, o que constitui a farinha de peixe, com a qual enchem sacos, que guardam como mantimento."
1828 Rio Arinos, Mato Grosso FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829). São Paulo, EDUSP/ Cultrix, 1977. p. 235 Ficha: 4847/ 2927
(Referindo-se aos índios Tupinambás)"Com frequência vem também gente que mora distante do mar, recolhem grande porção de peixes, terram-nos sobre o fogo, esmagam-nos, fazendo deles farinha, que secam bem a fim de que se conserve por muito tempo. Levam-na para casa e comem-na juntamente com a de mandioca. Se levassem assados os peixes para casa, então não se conservariam por muito tempo, pois não os salgam. Também leva uma vasilha mais farinha de peixe do que aí caberiam peixes assados inteiros."
1554 Enseada de Mangaratiba, Rio de Janeiro STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1547-1554). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 159
(Referindo-se aos índios Tupinambás)"Preparam também uma sorte de farinha de peixe e carne, do seguinte modo: assam a carne, ou o peixe, na fumaça sobre o fogo, deixam-na secar de todo; desfiam-na, torram-na de novo depois, ao fogo, em vasilhas queimadas para tal fim e que chamam inhêpoã; esmagam-na após em um pilão de madeira e passando isto numa peneira, reduzem-na a farinha. Essa se conserva por muito tempo. O uso de salgar peixe e carne, nem o conhecem. Comem a tal farinha junto com a de mandioca, e isto tem muito bom gosto."
1554 Enseada de Mangaratiba, Rio de Janeiro STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1547-1554). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 163

Na panela: o único prato que já tinha comido com piracuí era o bolinho. E, mesmo que não soubesse nada do produto, certamente seria a primeira coisa que me viria em mente. Aqueles fiapinhos de peixe lembram de imediato um bacalhau seco finamente desfiado. E suspeito que o bolinho de bacalhau tenha sido a inspiração para o bolinho de piracuí, que parece ser o prato que melhor o representa Brasil afora.
Procurei várias receitas do bolinho, mas vi que eu tinha pouca farinha para as receitas que encontrei e também não quis usar batatas e sim mandioca ou aipim. Mas mantive a inspiração nos bolinhos de bacalhau. Só que com mais mandioca que piracuí (já que, se fosse fresco o peixe, a proporção seria muito maior). Então achei mais honesto chamar minha versão de bolinho de mandioca com piracuí e não o contrário. Ficou tão bom e fofinho, que com ele a gente nem sente muita falta da iguaria portuguesa.
E a sopa foi nascendo já no fogão. Coloquei temperinhos usados comumente no Norte, alho, pimenta de cheiro doce, cebola, pimentão, tomate, coentro-de-peixe (chicória-do-pará), alfavaca, além de água, farinha d´água e piracuí. Aí provei e achei que ficaria bom ali um pouco de leite de coco e umas gotas de suco de limão. E, pronto, ficou assim, meio amazônica, meio tailandesa, com ingredientes comuns para todos nós. Se ficou gostosa? Sou suspeita pra dizer, mas o Marcos elogiou.



Bolinho de mandioca com piracuí

1 xícara de piracuí (50 g)
Meia cebola (100 g) picada finamente
Meia xícara de salsinha picada finamente (ou coentro, se preferir)
1 pitada de pimenta-do-reino
2 gemas
350 g de mandioca (aipim) já cozida e espremida em espremedor de batatas (2 xícaras, no final)
Meia xícara de água de cozimento da mandioca (ou meia xícara de leite)
1 pitada de sal
2 claras batidas em neve
Bastante óleo para fritar
Numa tigela, coloque a piracuí, a cebola, a salsinha, a pimenta-do-reino e as gemas. Misture bem. Junte a mandioca espremida e a água de cozimento ou leite aos poucos, até obter um purê cremoso que dê para mexer com espátula sem esforço. Adicione uma pitada de sal. Junte as claras em neve e misture delicadamente. Prove o sal e acrescente mais se for preciso (a piracuí já tem um pouco de sal). Aqueça óleo suficiente para fazer fritura de imersão. Molde os bolinhos usando duas colheres de sobremesa. Coloque poucos bolinhos de cada vez e deixe fritar dos dois lados até ficarem dourados. Coma quentinhos, mas saiba que ficam bons até esquentados (comi hoje no almoço).
Rende: 30 bolinhos

Sopa de piracuí no leite de coco

2 colheres (sopa) de óleo de coco ou azeite
3 dentes de alho picado finamente
Meia cebola (100 g) picada finamente
2 colheres (sopa) de pimentão vermelho picado em cubinhos
2 colheres (sopa) de pimentão verde picado em cubinhos
1 pimenta de cheiro doce, tipo murupi, picada finamente
1 tomate sem pele picado em cubinhos
2 folhas de coentro-de-peixe (chicória-do-pará, coentrão, coentro-do-pasto) ou 2 colheres (sopa) de coentro comum picado
7 folhas de alfavacão picadas
1 xícara de piracuí (50 g)
1 litro de água fervente
1/3 de xícara de farinha d´água do Uarini (tipo ovinha) ou outra d´água comum
1 xícara de leite de coco
Gotas de molho de pimenta a gosto
Suco de meio limão rosa pequeno
Numa panela, aqueça o azeite e doure nele o alho. Junte a cebola e deixe murchar. Adicione os pimentões, a pimenta, o tomate, o coentro e o alfavacão e misture. Junte a piracuí, a água e uma pitada de sal. Em seguida, coloque a farinha d´água e misture. Cozinhe por 5 minutos ou até os grânulos da farinha estarem transparentes. Junte o leite de coco e gotas de molho de pimenta a gosto. Prove e corrija, se necessário. Quando começar a ferver, desligue o fogo e junte gotas de limão. Sirva quente decorado com folhinhas de coentro-do-pasto em flor ou do outro.

Rende: 4 porções




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