Comida Saudável
Arroz com marreca em Cachoeira do Arari, no Marajó
Fui à Cachoeira do Arari, município da Ilha do Marajó, com o casal Tainá Khalarje e Carlos Ruffeli. Nos conhecemos em Belém e Tainá queria me mostrar o Museu do Marajó, me levar para comer arroz com marreca, o prato emblemático do lugar, e ainda me apresentar a problemática ambiental que cerca a cidade. De quebra ainda conheci mais sobre o trabalho dos dois no projeto Iacitatá - Amazônia Viva, que aborda a comida como cultura e está mapeando saberes, sabores e encantarias amazônicos do Pará. E Tainá, descendentes de índios Aruãs do Marajó, sabe do que fala.
A viagem de Soure até lá não é rápida. Demoramos cerca de 3 horas por causa das esperas nas duas balsas que precisamos para atravessar rios. E parte das estradas são esburacadas. A natureza do Marajó é a coisa mais extraordinária que já conheci, mas no que depende do trabalho do homem, especialmente dos políticos, é também um dos recantos mais ao Deus dará de que se tem notícia.
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Aqui dá pra ver parte da floresta no chão para dar lugar ao arroz |
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O gavião sempre à espreita |
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E o urubu sobre a floresta morta |
Para chegar à cidade, a estrada passa por quilômetros de floresta povoada com uma diversidade de árvores amazônicas e palmeiras, que de repente acaba, dando lugar a um horizonte sem fim de arrozal, que visto do carro achata-se num verde uniforme de campo de golfe. Nas beiradas deste verde, porém, nota-se a natureza mudada. A interferência é visível. O Rio Acari, por exemplo, sofreu mutações, ganhando novos braços para irrigar o arroz. Suas águas agora se desviam em lágrimas em vermelho metálico que me fez pensar em carga pesada de defensivos químicos e tóxicos. Nenhuma alma viva circula por ali a não ser os gaviões, pousados nas cercas, como guardiões do cultivo, e os marrecos, perseguidos por estes algozes.
Os marrecos, usados para preparar o prato típico, arroz com marreca, aumentaram a população e nadam faceiros por entre os campos alagados, com comida farta, os grãos cultivados. Mas a felicidade não durará muito, nem para as aves nem para os moradores locais. Os marrecos quase não podem ser caçados, afinal ninguém mais entra naquelas terras, e gaviões foram trazidos de Goiás, dizem, para acabar com os marrecos que comem todo o arrozal. E, claro, vão acabar com outras aves menores também.
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O gavião é o guarda-mor destas terras |
Os moradores reclamam do aquecimento da cidade que está sitiada pelo arroz - 1/3 do território está ocupado com arrozal. Reclamam que não podem mais pescar. Reclamam da falta de emprego (a desculpa para um empreendimento desta natureza é a de que está trazendo desenvolvimento e empregos para a cidade, coisa que a gente já sabe que é mentira). O cultivo é todo mecanizado. Você anda quilômetros sem ver uma pessoa trabalhando, a colheita e o beneficiamento são feitos por máquinas e a pulverização de veneno é por avião. Quem começou o cultivo ali e é dono da maior parte do arrozal é o deputado federal Paulo Quartiero, aquele mesmo expulso da Raposa Serra do Sol, do mesmo grupo Camil do nosso arroz de todo dia. Mas não sou a melhor pessoa pra falar disso, não. Por isto, indico esta reportagem da Bettina Barros, no Jornal Valor: Ilha de Marajó: crônica de mais um conflito anunciado. Aqui, só um trecho: "Quartiero mudou esse quadro. Além de cercar a área, limitando o vaivém dos locais, a comunidade ficou encurralada pelo arrozal. ?Trouxemos todas as cercas de Roraima. Eles [os índios] não queriam a terra? Deixamos só a terra?, diz Renato Quartiero, filho de 30 anos do deputado e administrador da fazenda. Ele dirige a caminhonete enquanto são realizados trabalhos como a abertura de um braço do rio Arari para permitir o plantio, canais de irrigação, estradas etc. No banco de trás, seu pai explica: ?Está vendo? Não tem desmatamento nenhum. Aqui não tem floresta?, afirma ele, referindo-se aos campos naturais de Marajó. ?É tudo coisa de ambientalista. Esses mesmos vigaristas que vêm falar em aquecimento global?, diz. Continue lendo aqui.
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Águas vermelhas e metálicas. Isto não é normal! |
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Lá atrás ainda tem uma floresta |
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Rio desviado para fazer canais de irrigação |
O bom de Cachoeira do Arari, no entanto, é o que resta de paisagem e as pessoas, muito simpáticas, solícitas, orgulhosas de sua cultura. Visitamos, com Tainá e Carlos, o Museu do Marajó, idealizado pelo Padre Giovanni Gallo (1927-2003) em 1972 e instalado no prédio de uma antiga fábrica desde 1984. Ali está a maior coleção de cerâmica marajoara além de todos os outros saberes relacionados àquela cultura. Hoje é um museu tocado pela comunidade, com falta de recursos para manutenção e reformas apesar do acervo precioso. A atual diretora é também cozinheira. Dona Zezé é guardiã não só do próprio Museu, mas também "cozinheira-guardiã dos sabores da terra dos Aruãs", como diz Tainá.
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Arroz com marreca |
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Tamuatá no tucupi |
Então, não poderíamos comer em outro lugar se não no restaurante da Dona Zezé, que funciona nos fundos de sua casa. O prato "Arroz com Marreca" é a lembrança viva daquilo que ronda hoje a cidade, mas por enquanto ainda faz sucesso. Talvez um dia, com o desequilíbrio que o arroz anda trazendo para a cidade, perca a graça. Prato completo, é feito com apenas três ingredientes fora a água: marreco, sal e arroz. E é tão gostoso como se a ave tivesse sido deixada em marinada de temperos frescos. Foi no restaurante da Zezé que comemos também um delicioso tamuatá no tucupi (tem receita aqui) - o peixe estava suave, sem pitiú e o caldo, bem temperado, meio ácido e adocicado, com muito jambu. Deixo aqui algumas fotos:
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A cidade virou uma estufa de tão quente - é o que todos dizem |
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Volte Sumano! (sumano é modo de dizer por lá - vem de ser humano) |
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Com Zezé no Museu do Marajó |
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Dedé com Tainá entregando um manuscrito antigo para o Museu |
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Carlos, Tainá, Zezé e Dona Jerônima, minha amiga de Soure |
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