Comida visceral e de extremidades
Comida Saudável

Comida visceral e de extremidades


Quando existimos sem consideração ou agradecimento, não somos homens, mas bestas.?
MFK Fisher.

O mocotó ou a canela do boi, depois de limpo e branqueado com água clorada, fica assim. Já o ossobuco fica acima do joelho. Na infância, comi muito gelatina de mocotó com suco de laranja, cravo e canela. Muito melhor que as gelatinas coloridas, de caixinha.

Enquanto as receitas do Mocotó não vêm (só vou publicar quando resolver umas dúvidas minhas que também podem ser sua, mas o moço é ocupadíssimo), aproveito o gancho sempre jogado pelo caderno Paladar, que hoje fala de sangue como ingrediente e que aparece em peso no bodin noir, na morcela, no chouriço, no frango ao molho pardo e no sarapatel. Recomendo, corram comprar o jornal O Estadão, se é que ainda dá tempo - não consegui publicar antes. Desculpe.

A versão original desta figura é a última foto - ia publicar só esta, manipulada, para não chocar, mas vamos jogar limpo, né?

Minha mãe poderia ser doutora em economia doméstica e bom senso por ter conseguido alimentar decentemente cinco filhos com o salário de operário do meu pai e a ninharia que recebia como costureira, trabalhando em casa. Prova disto é que nunca fui ao médico a não ser para as vacinas e quando furei a goela num acidente doméstico. E nunca, nunquinha, faltou uma fonte protéica no almoço e no jantar lá em casa. Além, é claro, de verduras, legumes e frutas ? banana ou laranja era a sobremesa de todo dia; maçã, só uma metadinha quando tinha. A gente sabe que dentre os três grupos de macro nutrientes, que inclui carboidratos e gorduras, as proteínas são as mais caras e difíceis de se obter, pelo menos nos dias de hoje. O segredo da Dona Olga: vísceras e tudo o mais que um boi ou porco pudesse dar. Bucho, fígado, miolo, rim, coração, mocotó. E tudo com tempero muito bom. Era nosso banquete, com arroz e feijão sempre frescos. Mas também ela veio da roça, onde os bichos que nos alimentam são quase abençoados e nenhuma parte deles é desperdiçada. No dia de matança no sítio de meus avós, cada um lidava com uma coisa. O sangue era aparado e virava chouriço temperado com o redanho; a gordura era picada e derretida no tacho; o couro com alguma carne era limpo e fumado no fogão de lenha; as tripas, lavadas no rio e viradas pelo avesso com o tal do pau-de-limpar-tripa, para se transformar em lingüiças pedaçudas; a fissura era picada para o refogadinho de pacuera ou para a buchada (a buchada de porco da minha avó era especial, explico a seguir), o lombo virava carne de lata, coberta de banha, o nosso confit tupiniquim. E assim, o trabalho ia até a noite. Por isto, parecia ser uma coisa banal minha mãe comprar de vez em quando uma cabeça inteira de porco, às vezes só a metade, assar com a melhor marinada de limão cravo e alho, e botar na mesa sem cerimônias. Eu via isto com naturalidade e apetite e nunca me importei de comer olhos, cérebros e tutanos. Mas gostava mesmo era da bochecha do bicho. E de cérebro de galinha. Com o perdão da rima, um bicho não deveria morrer em vão, por sua porção de filé mignon. É o que pensa também o autor de Nose to Tail Eating, do inglês Fergus Henderson, cuja entrevista está lá no Paladar de hoje, na qual ele responde sobre seu interesse em trabalhar com órgãos e sangue: ?Não é algo delicioso, mas parece injusto não usar o animal inteiro. Parece uma indelicadeza, uma infantilidade não fazê-lo?.

Pois é, um porco não é só lombo; um boi não é só filé e um frango não é só peito. Só peito, é chester. Frango que cisca tem asas, pés, moelas, fígados e cabeça. Todos têm proteínas, ferro, vitaminas e sabor.

Nunca vi abate de bois, mas dele também tudo se aproveita. Em pequenas propriedades, o porco ou o cabrito/ bode têm tamanho familiar ideal especialmente na era pré-geladeira.

Aqui, os destinos das partes do porco abatido no sítio dos meus avós. Fotos no Mercado da Lapa, tiradas na semana passada.


A fressura ou pacuera inteira: língua, traquéia, pulmões, fígado.




Pode ser comprado assim, picado, incluindo sangue coagulado e rim. Mas entendidos preferem a fressura inteira e outras peças separadas, para picar em casa.

Fressura ou pacuera: pulmão, traquéias, fígado, língua e coração. Minha mãe chama o pulmão de pacuera mole e língua, de pacuera dura. O rim também entrava, embora não faça parte da fressura. O nosso refogadinho de pacueras não era exatamente como o sarapatel nordestino, que pode levar sangue. Este não levava. Mas tudo era picado e refogado com temperos. Lava-se bem, aferventa cada peça inteira em água e sal para não ficar molenga e facilitar o corte. À medida que cada peça cozinha, tira da água e pica em cubinhos. Depois, basta fazer um refogado com banha, bastante cebola, alho, gordura, pimentão, pimenta vermelha ardida, pimenta-do-reino, cominho, colorau e muito cheiro verde. Como as carnes já estão cozidas, basta refogar tudo. O cheiro-verde, só no final.
Pacuera vem do tupi piaku´er ou ?entranhas já tiradas?.




Bucho ou dobradinha ou estômago: primeiro deve-se lavar bem, pois têm cheiro forte e depois esfrega-se com fubá e limão para tirar o visgo que há nele (os do mercado são lavados com água e um pouco de cloro para clarear). Com ele minha avó fazia a buchada, que também é diferente da buchada de bode como se conhece. Ela recheava com o refogado de pacuera, só que era tudo passado na máquina. Costurava o bucho e fritava em pouca banha, virando sempre na frigideira até ficar dourado. Depois era só cortar em fatias, ficava como um embutido bom e lindo.



Passarinha (baço): Como ninguém gostava, esta era o prêmio do cachorro. Mas também se come. Uma vez comprei e fiz uma espécie de curry africano, com muito cominho. De sabor ficou bom, só que foi difícil trabalhar com ele ? muito sanguinolento e escorregadio. Mas, segundo Eliana, uma baiana que está trabalhando aqui em casa, na família dela se faz assim: aferventa para firmar, depois é só fatiar, temperar e fritar. Ficou de fazer dia desses.

Sangue coagulado para o sarapatel

Sangue: minha avó temperava com sal, grãos de erva-doce, alho picadinho, salsinha e bastante cebolinha. Juntava ainda o redanho picado, que lhe dava textura aveludada e sabor indescritível . Embutia em tripas, amarrava e cozinhava. Era frágil e tinha que ser consumido em pouco tempo. Frita inteira e fatia.

Lombo cheio: explicação da minha mãe: ?ué, é só fazer um corte no lombo como uma cesariana, encher de carne moída, costurar e fritar?. Insistindo, ela explica melhor: o lombo foi antes temperado com limão cravo, alho, sal e imenta-do-reino e deixado no tempero por umas 5 horas. A carne moída leva temperos como sal, pimenta, alho e colorau e também fica umas horas em repouso para pegar o tempero. Depois, frita-se bem em banha, numa panela de ferro, pingando água para cozinhar bem por dentro. Quando está bem cozida e dourada, corta e guarda na lata, imersa em banha. Antes de servir, é só tirar da lata e aquecer.

Couro ? chamamos de courinho; secava no fogão de lenha e usava em quadradinhos no feijão.

Torresmo ? usava só a gordura com alguma carne entranhada, sem o couro (não era torresmo a pururuca). Para prensar e extrair a banha ou comer com sal e mandioca cozida sem sal.

Pé, rabo, orelha, focinho ? minha avó cozinhava com feijões, favas, ervilhas ou grãos de bico.



Estas fotos de redanho são antigas

Redanho: usava para embalar bolinhos de carne moída ou picada, como fonte de gordura para lingüiças e chouriços.



Partes do boi


Duas partes do estômago dos ruminantes, no caso o boi: o da esquerda é o bucho casinha de abelhas, mais macios e desenhado em alvéolos.
A outra parte: Omaso, folhoso ou 60 folhas - é uma das divisões do estômago dos ruminantes. É onde ocorre a absorção do excesso de água do bolo alimentar - as folhas aumentam a superfície de contato e potencializa a função. Já comi dele em restaurante chinês, frio, como entrada. Muito bom. Ao contrário do que se imagina não é a parte terminal do intestino.
Coração

Língua e coração
Língua limpa
Rabo ou rabada
Tripas
Foto chocante: não ia mostrar, sorry, mas o faço como licença didática - o mocotó genuíno na feira de São Joaquim - Salvador/BA. Depois de limpo e branqueado, à base de cloro, fica com a cara daqueles da primeira foto ou como encontramos no mercado.




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