Comida Saudável
Feijão mangalô, orelha-de-padre, lablab. Coluna do Paladar. Edição de 09/07/2015
Hoje tem caderno Paladar cheio de receitas de sanduíches bem bacanas. E também a coluna desta que escreve. O texto está no blog do Caderno, no Estadão impresso e também reproduzido aqui.
PANC DA PERIFERIA
Este era o tipo de planta que se cultivava no fundo das casas e se enganchava nas cercas que separavam os quintais nas periferias, reproduzindo na cidade um pouco da cultura da roça daqueles migrantes de todo o Brasil. Um tipo de provisão perene para toda a vizinhança, embora só comêssemos as vagens verdes. E a mãe não se cansava de preparar daquele mesmo jeito, sempre com as vagens cortadas ao meio deixando escapar uns feijões imaturos que se misturavam com o alho picadinho e, às vezes, com o toucinho defumado. No final, a salsa e cebolinha cortados grosseiramente para conservar o perfume e a coloração viva faziam contraste com o verde claro do legume cozido. Com o arroz ainda úmido e fumaçando, feijão e sardinha frita, o prato era um clássico.
A textura cremosa e aveludada na boca é uma das minhas mais ancestrais e inesquecíveis experiências sensoriais. Orelha-de-padre - era este o nome - e a taioba, segundo minha percepção infantil, estavam na mesma categoria de comidas de conforto tátil. Se o sabor fosse ruim, claro, a textura não seria suficiente para conquistar. Um amargo ligeiro com discreto adocicado e notas herbáceas formam, no entanto, uma combinação agradável até para crianças.
Há muitas variedades de mangalô mundo afora, mas falo daquele de flores brancas e de feijões vermelhos que povoa minhas lembranças e é o mais comum de ser encontrado por aqui ? muitas vezes apenas como planta para adubação verde nos cultivos agroecológicos.
Meus avós o cultivavam no sítio e meus pais e vizinhos plantavam aqui em São Paulo, de modo que entre nós era um legume tão costumeiro quanto a vagem. Mas isto tem algumas décadas e de lá pra cá a espécie, que já não tinha cultivo comercial, caiu em completo desuso e está incluída no livro dos pesquisadores Valdely F. Kinupp e Harry Lorenzi como uma panc (planta alimentícia não convencional).
Eu nunca perdi de vista esta panc da periferia e assim que tive um muro para chamar de meu tratei de aumentar sua altura com uns fios para dar suporte à trepadeira. Assim, tenho folhas, flores, vagens e feijões em vários estágios durante o ano. A planta toda, hoje sei, é comestível. Até a raiz pode ser aproveitada se a planta for cultivada como a jícama ou o jacatupé, podando sempre a parte vegetativa, para que a batata ganhe mais amido. De minha parte, não faço questão da raiz, que arrancada mataria todo o pé, se com ele tenho alimento farto para duas casas. É que a planta lança seus longos ramos sobre qualquer aparo que lhe faça as vezes de um tutor, sem respeitar fronteiras.
No inverno, o pé de mangalô fica menos vistoso, perde um pouco das folhas, mas continua ativo. Já na primavera, ele se renova com folhas tenras e flores vistosas ao mesmo tempo que novas plantas começam a surgir a partir dos feijões maduros que caíram. Poucos dias após o aparecimento das flores, as vagens já podem ser colhidas e o auge da produção se dá entre maio e agosto. São espessas e planas, com projetos de grãos dentro delas. São estas que, quando cozidas, têm textura aveludada.
Os estágios que se seguem permitem que tenhamos na mesma planta diferentes ingredientes, afinal vagens e feijões secos têm usos diversos. Quando os feijões começam a engordar, as vagens vão ficando finas e mais claras. Neste ponto, elas podem ser abertas e descartadas para que se aproveitem os grãos verdes como se fossem ervilhas, com ou sem pele ? ela escorrega fácil quando os grãos são apertados um a um e os feijões ficam mais delicados na mordida. No interior da Bahia não é difícil encontrar nas feiras, quando é época, os grãos do feijão mangalô assim, já pelados. Poucos dias depois, os grãos começam a avermelhar e continuam tenros para comer como feijão verde. E quando as vagens se desidratam completamente, os grãos estão secos e podem ser debulhados, estocados e preparados como os feijões que compramos nos mercados. Demolhados e cozidos, eles são deliciosos e lembram um pouco sabor e textura de favas e caroço de jaca, conservando um pouco daquele amargo da vagem fresca.
Aliás, o toque amargo e o bom sabor que sentimos nos feijões e nas vagens tem a ver com a presença de glicosídeos cianogênicos, que geram ácido cianídrico, como nas mandiocas bravas ou nas amêndoas amargas. Porém, o perigo de intoxicação é eliminado com a cocção.
Se quiser se aprofundar no estudo deste feijão, vai se deparar com conflitos sobre o nome científico, Lablab purpureus e Dolichos lablab, por exemplo, e quanto à sua origem, África ou Ásia. O que se sabe é que hoje está espalhado por vários países tropicais e subtropicais da América, África e Ásia e que ao Brasil chegou com africanos, vindo daí o nome mangalô. Nomenclatura é um grande problema das plantas exóticas em relação às nativas, pois ganham vários nomes locais emprestados de outros donos, relacionados ao formato, ao uso ou à origem, tais como orelha-de-padre, ervilha orelha-de-padre, feijão do Egito, feijão de pobre etc. Mangalô e lablab são meus preferidos, mas pela tradição a orelha do padre continuará a arder por aí.
Agora, algo fascinante de ver quando se embrenha nas pesquisas sobre o uso da planta na África e na Ásia é a diversidade de pratos feitos com suas partes. Muito diferentes do que costumamos preparar por aqui, especialmente as vagens. As folhas jovens são usadas como espinafre (fiz um purê de mandioca com as folhas cozidas e trituradas e ficou muito bom), os grãos maduros e secos podem ser germinados ou fermentados e as vagens planas, cortadas em tiras e cozidas, fazem diferentes saladas, só para citar alguns exemplos.
Se você frequenta feira de produtores, pergunte pela planta (talvez eles a conheçam como orelha-de-padre). Já encontrei em sacolão, mas não é comum. E se puder plantar, as sementes são encontradas em lojas virtuais e hortas urbanas. Saiba que a planta é rústica e se adapta a qualquer solo desde que tome sol e receba água. Há variedades bastante ornamentais de flores e vagens roxas que às vezes aparecem nos mercados orientais do bairro da Liberdade.
Para ampliar estas informações e eu recomendo, confira os nomes que o feijião mangalô recebe mundo afora: Lablab, frijol jacinto, hyacint bean, quiquaqua, caroata chwata, poroto de Egipto, dolique lab-lab, dolique d'Egypte, fiwi bean, chicarros, frijol caballo, gallinita e frijol de adorno entre tantos outros.
Como preparar
As vagens: lave bem e puxe o fio que há entre as duas partes da vagem. Cozinhe em água levemente salgada por um minuto e escorra. Use inteira ou picada em saladas, refogados, sopas, fritadas etc.
Os feijões: o tempo de cozimento vai variar conforme a maturação dos grãos. Feijões verdes devem cozinhar em cerca de 20 minutos mais ou menos. Para tirar a pele, basta puxá-la grão por grão. Os secos devem ser deixados de molho por 12 horas, escorridos e cozidos na pressão em nova água por cerca de 20 minutos. Ficam bons com carnes gordas.
As folhas: escolha as jovens e tenras e cozinhe em água salgada até que fiquem macias ? cerca de 15 minutos. Escorra, pique e use em sopas, refogados e como complemento verde para massas de panqueca, macarrão ou nhoque, por exemplo.
VAGEM MANGALÔ REFOGADA
1 colher (sopa) de azeite
3 dentes de alho picados
2 colheres (sopa) de bacon picado
1 colher (chá) de pimenta dedo-de-moça picada
200 g de vagem mangalô (lab lab) sem o fio, aferventada e cortada ao meio
½ colher (chá) de sal ou a gosto
Água quente
Pimenta-do-reino triturada na hora a gosto
Salsinha picada a gosto
Aqueça o azeite com o alho e o bacon e espere o alho começar a dourar. Junte a pimenta e a vagem. Tempere com sal, junte um pouco de água, misture delicadamente, tampe a panela e deixe cozinhar por cerca de 5 minutos.
Prove o sal e corrija, se necessário. Espalhe salsinha por cima e sirva como acompanhamento.
Rende: 4 porções
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