Marcos e eu. Ou serra, o peixe
Comida Saudável

Marcos e eu. Ou serra, o peixe




Marcos e eu somos pessoas de jeito esquisito que o destino fez o favor de juntar. No sábado fizemos 25 anos de convivência sob o mesmo teto. O que para muitos seria um dia de festa de arromba, para nós foi um dia como outro, especial como sempre. Acordamos animados como todos os dias, geralmente fazendo alguma brincadeira um com o outro. Quando ele já abria a janela e eu estendia a cama, me lembrei: era 10 de janeiro e neste mesmo dia, 25 anos atrás, ficou instituído informalmente sem nenhuma cerimônia nem tintins de taças que dali para frente estaríamos sempre juntos.
E só marquei esta data porque é o dia que aparece registrado no meu teste de gravidez positivo. Já estávamos meio morando juntos, tudo havia acontecido aos poucos e então continuamos assim. Naquele dia comemoramos ao nosso modo o bebê que viria, ficamos felizes e não pensamos se seria difícil ou não estudar e ter filho ao mesmo tempo. Meus pais ficaram sabendo por mim, naquela mesma manhã, minha mãe ficou brava, queria que eu me casasse; meu pai ficou feliz e disse que tudo bem não casar, que o Marcos era melhor que ele e que eu deveria comer espinafre, que tinha muito ferro (não é bem assim, mas tudo bem, naquele dia comi).
Éramos dois jovens estudantes, cheios de vida e pouco juízo. Ele, no segundo ano de medicina e eu, fazendo vestibular para minha segunda tentativa de curso - artes plásticas. Comecei as aulas já podendo soltar a barriga e todo mundo ficava com dó, coitadinha, tão novinha, já vai ser mãe. E eu saltitante de feliz. No dia em que Ananda nasceu, fomos de ônibus circular para o HU quando tive as dores. Com 15 dias de vida, ela já foi para a aula comigo apresentar trabalhos de fim de ano, fazer provas, exibir o mimo. No colo, porque não tinha carrinho.
Estudando na USP, tínhamos direito a moradia estudantil, que era um apartamento modesto mas bem ajeitado com nosso capricho, maior que muitos que vejo por aí. Todinho para a família de três durante cinco anos. Neste meio tempo resolvi de novo mudar de curso, já no terceiro ano. De novo vestibular. Nesta época o Marcos sabia fazer umas gororobas de legumes e arroz integral e só me chamava para comer quando estava pronto. Tudo para eu não precisar parar de estudar para o vestibular. Isto nas férias e finais de semana. Durante a semana eu trabalhava numa editora enquanto a Ananda ficava na creche da Usp. Fui fazer nutrição. Os dois estudando cursos integrais sem nenhum emprego e uma filha pra criar. No meio do caminho Marcos também largou a medicina e fez vestibular pra filosofia. Entrou em primeiro lugar, cursou um pouco e voltou pra medicina. Um apoiando as maluquices do outro. Bem, não pedimos um tostão para ninguém, a Ananda cresceu feliz ouvindo de Bob Marley a Bach e desde cedo fazendo lição com a gente. Com isto aprendeu a ler e a escrever com quatro anos e não precisamos mais adormecer lendo livrinhos para ela. Tornou-se independente.
Sobrevivemos com bolsas de iniciação científica, dos bolos que eu vendia na faculdade, das aulas de química que o Marcos dava à noite em colégios de periferia e, durante um tempo, dos bicos dele nos finais de semana como auxiliar de cozinha numa casa de chá - ia da Usp, no Butantã, à rua Bela Cintra, nos Jardins, de bicicleta porque precisava economizar e também porque já não havia mais ônibus quando voltava para casa de madrugada. Houve época em que apenas eu ou apenas ele trabalhava e nosso dinheiro era comum, guardado num cofrinho para o uso no mês.
Se a vida era dura? Não. Nem um pouco. Nunca reclamamos nem lamentamos escondidos. Éramos dois bobos felizes, encantados com um boneca. Tínhamos um lugar agradável para morar que cuidávamos como casa e não república de estudantes, embora todo o resto fosse assim. E nos considerávamos sortudos por morar num verdadeiro condomínio de luxo - afinal, o campus tinha e ainda tem muito verde, o apartamento tinha vista para a raia olímpica, havia um clube super equipado à disposição, museus, restaurantes, teatro, cinema, tudo ali a alguns passos. Precisava mais? Nada mais era preciso naquele momento além de satisfazer as necessidades urgentes e básicas que eram comer, se deslocar, se higienizar, estudar, ouvir música, passear, se divertir. E para isto, nosso dinheiro dava. Então, já éramos felizes desde lá longe.
Os aniversários da Ananda eram na cozinha coletiva e reunia outras crianças do Crusp além dos amigos da creche. Lotava de gente pra comer coisas esquisitas como doce de banana no copinho (porque banana madura era muito barata no fim de feira), suco de abacaxi com hortelã, chá gelado, patê de ricota, pão quentinho feito na hora, gelatina de beterraba e vinho de garrafão para os adultos. Não sobrava nada e todo mundo se divertia. Refrigerante, Shopping, McDonald? Nada disto a menina conheceu na infância. E ainda assim cresceu sem traumas. Ela é educada, doce, decente e amorosa.
Ananda já se forma em medicina neste ano na mesma escola do pai e neste momento estagia como interna no mesmo Hospital Universitário onde nasceu. Como ela nasceu no mesmo ano em que fomos morar juntos, é difícil separar as coisas. Ela viveu cada momento de conquista nosso, viu nossa formatura, bateu perna com a gente pra procurar casa, opinou em compras de móveis, de carro e da casa onde moramos. Enfim, além de filha foi conivente o tempo todo.
E por que continua dando certo este casamento? Acho que é porque Marcos e eu pensamos parecido e de modo esquisito sobre muitas coisas essenciais mas diferimos naquilo que faz do outro um ser admirável e complementar. Diferimos apenas no que nos faz amigos e não inimigos. Seguimos sem muitas ambições materiais e com sonhos possíveis. Assim, nunca ficamos frustrados por não ter isto ou aquilo, por não conseguir fazer tal viagem, por não beber o vinho xis ou não poder ir a certos restaurantes. Se não dá para comemorar com champanhe, que tenha o mesmo valor um copo de cerveja. O que importa é estar junto, é sentir prazer na companhia, é querer estar junto. Até aqui foi isto que sempre importou. O resto é lucro.
Somos esquisitos também com as convenções. Por exemplo, fomos ter um par de alianças depois de uns 10 anos de convivência, quando mandamos derreter aneis de família. Há cerca de 6 meses meu dedo inchou por causa de um espinho de ora-pro-nobis e Marcos teve que cortar a aliança com um alicate. Ananda (sim, conseguimos gerar um ser normal) achou aquilo um disparate, um mal agouro. Mas era a aliança ou meu dedo. Vão-se os aneis, que fiquem os dedos. Desde então, alternamos a mesma aliança. Uma semana eu uso, outra, ele. Ou passamos semanas sem trocar. Não temos muitas regras a seguir. Nem cobranças. Nas viagens, por exemplo, desde quando pudemos ter carro, saimos com um destino e nenhuma programação. Se houver uma cachoeira no meio do caminho paramos e ficamos o tempo que for preciso para satisfazer as vontades. Depois a gente vê como é que fica. Então, o fato de nos preparar para ir até João Pessoa, pore exemplo, não significa que chegaremos lá. Vamos ficando no meio do caminho, porque o trajeto também é importante.
Mas somos diferentes assim: Gosto de prosa e ele de poesia. A trilha sonora do meu filme é sempre dirigida por ele, que chega em casa já botando pra tocar seus cedes e velhos elepes, quebrando o silêncio, alegrando o lar doce lar (tudo bem que às vezes bota pra tocar um fado de chorar na hora do jantar...). Tendo a ser sedentária quando se tratam de exercícios físicos. Já ele é corredor e faixa preta em aikido. No sítio, o sedentário é ele. Enquanto ando pelo mato, planto, podo, colho, não paro, ele fica na varanda lendo pilhas de livros deitado na rede, pensando, escrevendo, dormindo, apreciando o por do sol. Aí, do nada, levanta, veste um short curto, calça um tênis e vai correndo pela estrada até a represa, como um Forest Gump. Eu amo cozinhar e ele não sabe nem que macarrão se coloca na água fervente. Ou que alcachofras tem penugem dentro. Ele é mais romântico que eu e sempre me dá presente e cartãozinhos no meu aniversário e no Natal. E também fora de hora. Quando namorávamos, ele sempre me trazia uma flor de jasmim-dos-poetas que roubava de um jardim pelo caminho. Eu me esqueço do cartãozinho. Prefiro dizer ao vivo. Além de tudo, ele elogia minha comida, apóia tudo o que faço e agora deu também de ter blog. É o Divertimento para Clarinete e Orquestra Opus 2, onde fala de tudo menos de medicina, a não ser na descrição de cirurgião "preciso no corte pra fazer sangrar só o necessário" e apesar de ser estudioso, seguro e determinado no seu ofício de otorrinolaringologista. Eu sou medrosa e pés no chão; ele adora esportes radicais e estar no mar, no ar. Para algumas coisas ele é muito metódico e eu sou desorganizada. Ele arruma a mesa do café da manhã de noite e eu acordo mais cedo que o necessário, desço descabelada e sonolenta só para tomar junto o café que ele preparou. Durante a semana ele se levanta às 5h30 e eu, às 6. Meu horário natural de acordar é às 7. O dele, às 10. Mas nos fins de semana, chegamos a um meio termo. Uma das tantas coisas que temos em comum é que somos tímidos e desajeitados para dançar.
No sábado foi ele quem arrumou a mesa no quintal, colocou vela e botou para gelar um espumante. Mas fui eu quem trocou os guardanapos de papel pelos de pano e melhorou a posição dos talheres. E, como sempre, cozinhei sozinha. Mas ele está sempre na retaguarda ajudando na pia. Comemos, brindamos, fizemos fotos engraçadas, trocamos de mão a aliança única. É, enfim, assim que a gente se entende, se admira, se completa, se diverte, se ama. Não sei onde vamos chegar, mas o caminho tem sido bom e divertido.
Eu só ia falar do peixe (risos). E nem foi comprado com este propósito, o de comemorar. Como relatei há alguns posts, almoçamos aquele frango de vitrine. Sendo já tarde, nem sabíamos se haveria ou não jantar. Este nosso jeito esquisito de não programar nada. Lá pelas 10 da noite deu fome e resolvemos fazer o peixe que havia comprado no mercado. Fiz um dos filés e congelei o outro para fazer um sushi no domingo.

Um peixe chamado serra
A vendedora chinesa, da peixaria do mercado da Lapa, descobriu-se paciente do Marcos e nos deu a informação privilegiada que o serra estava fresquinho, tinha acabado de chegar, que dava pra comer como sushi. Não titubeamos. Compramos logo dois, com cerca de um quilo e duzentos gramas cada, R$ 10,00 o quilo.
Também conhecido como sarda (o nome científico é Sarda sarda), ou bonito-atlântico, serra-comum, entre outros, nada tem a ver com o peixe-serra que tem uma serra no bico. Ocorre nas águas tropicais, subtropicais e temperadas do Atlântico. Em todas as referências que vi, aparece a informação de que sua carne não é muito apreciada. Não entendi porque, já que me fez lembrar o atum, inclusive como sashimi e no sushi. A lista escura que aparece no meio do filé torna seu sabor ainda mais gostoso. Bem, para nosso jantarzinho comemorativo, não fiz nada a não ser temperar com sal e pimenta e dourar no azeite.

O peixeiro tirou os dois filés limpinhos, cada um com cerca de 400 gramas, pronto para ir à frigideira, à grelha, ao forno ou ser comido como sashimi.
Para o nosso jantar improvisado, dividi um filé ao meio cortando enviesado, temperei com sal e pimenta, dourei dos dois lados em frigideira antiaderente com azeite e despejei por cima um pouco de amêndoas picadas douradas em manteiga e misturadas com umas gotas de limão. As batatas cozinhei no vapor e misturei com temperinhos fritos em manteiga - mostarda, pimentas, cúrcuma, sementinhas de mentruz. Foi vapt vupt.

Olhe a pretensão: era para ser um lindo sushi prensado com filé de serra. Bonito não ficou, mas que estava gostoso eu garanto. É só seguir a receita que vem no pacote de arroz de sushi e usar aquelas caixinhas próprias, de madeira.

Este deixei inteiro e congelei. Ontem, foi meu almoço. Cortei em postas, temperei com sal, pimenta e também dourei no azeite. Simples assim, pra comer com arroz, feijão andu e abobrinha.




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