Na casa do Zé Pão e da Romilda
Comida Saudável

Na casa do Zé Pão e da Romilda


O nome dele é Zé Pão porque era gordinho quando criança. Mas hoje quem faz pão é Romilda. De queijo canastra quilômetro abaixo de zero, afinal sai da casinha pra cozinha a passos de ré. Quem se dá bem é João Vitor, o temporão boa praça que não aprecia muito cuidar de vaca, não. Mas gosta de tecnologia, usar roupas bonitas,  fotografar e ouvir música no celular. E, é lógico,  de sonhar desejos como qualquer criança de onze anos.  Já o neto Pedrinho, de quatro, anda sempre descalço, monta cavalo sozinho, gosta de empinar sua égua chamada Princesa, abraça os cachorros no chão e conhece todas as vacas pelo nome. E que ninguém mexa com ele, que ele capa. - Eu capo ocê! Capo memo, com aquele serrote ali ó!,  mostra a parede com o queixo e movimento de olhinhos arteiros ao mesmo tempo que faz gesto de capar com as mãos, como quem segura um salame com uma e com a outra passa a faca afiada para tirar uma fatia. 

Enquanto as crianças se divertem, Zé Pão e Romilda estão na lida desde às cinco da matina. Ou até antes. Quando Mara e eu encontramos Zé Mário na cooperativa de crédito, conforme contei ontem, ele disse que não botava muita fé que conseguiríamos resistir muito tempo nas duas casas, não - na casa do Zé Pão e na dele. Que era tudo muito simples, que a gente da cidade devia de estar acostumada a uma vida mais de conforto etc. Previu que a gente ia chegar, dar bom dia ou boa tarde e logo cascar fora, boa noite. Tanto é que no dia seguinte lá estava ele, com seu fusquinha azul impecável,  na casa da sobrinha Romilda, que é filha da irmã da sua mulher Valdete, para conferir se ainda estávamos lá e se iríamos mesmo pra casa dele no outro dia. Mal sabia Zé Mario que aquilo era tudo o que queríamos, que trocaríamos qualquer hospedagem em hotel cinco estrelas por aqueles dias de acolhimento sincero, de educação, gentilezas, fartura de comida boa, de dignidade, de paz, de silêncio, sem internet, sem jornal e TV que não faz papel de membro da família.  No fim da tarde, até a noite, só conversa, comida e um golinho de cachaça, que ninguém é de ferro. 

Mara e eu acordamos bem cedo nos dois dias em que ficamos ali e acompanhamos a ordenha e todo o trabalho com os queijos. O casal trabalha numa harmonia incrível, sem estresse, sem ranhetices, sem estupidez nem alterações.  A única alteração é no volume da voz na hora de Romilda chamar as vacas: Saracura, Saracura, Saracura! Numa multidão de vacas que esperam o encontro com seus bezerros,  que em outro grupinho esperam ansiosos, cada uma sabe seu nome. Saracura pede licença e vem vindo devagar. O bezerro, ao ouvir o nome da mãe, também se põe de alerta. Se está deitado, já se levanta e vem salivando de vontade de mamar. Só pra tirar a fissura, o bebezão mama um pouco enquanto a vaca come um tantinho no cocho. Logo os dois são apartados para que Zé Pão faça a ordenha manual. Romilda é quem amarra as pernas da vaca, quem vai organizando a fila - não descobri o critério para se chamar a Saracura, a Malhada, da Sete Copas, a Negona, a Librina, a Mateira, a Gaúcha etc. São quase cinquenta. Zé Pão não esgota as tetas; deixa um pouco pro bezerro que vai andando com a cabeça embaixo da barriga da mãe. Assim os dois saem de cena e terão até depois do almoço para ficarem juntos. Zé Pão não reclama do trabalho de apartar bezerros nem o de ordenhar, que parece cansativo demais. Diz que não vai trocar a técnica manual por ordenha mecânica, e que se for obrigado a trocar prefere parar de produzir queijos. 

Lá pela metade do tempo, Romilda aparece com a merenda: pães de queijo e uma caneca de alumínio com café doce. O leite vai sair quente e com pressão direto da teta da vaca. Era assim nossa merenda. Delícia. 

Os pães de queijo, Romilda fez no dia em que chegamos, para comer com café - um eterno merendar por aquelas bandas. A receita é a mesma daqueles que aparecem no final do filme  O Mineiro e o Queijo e faz todo mundo suspirar.  Usa pouco queijo e ainda assim os pães são deliciosos, crescidos, trincando.  Praticamente não usam farinha de trigo por lá. Tudo o que se come à guisa de pão é feito com derivados de mandioca e milho: biscoitos, bolachas, roscas, broas, pães de queijo. Os ovos são das galinhas do quintal, assim como a gordura vem dos porcos que comem tudo o que sobra, incluindo muito soro de queijo. Soro que alimenta também os cachorros,  que também comem os ossos das galinhas que botaram os ovos.  Quase nada é comprado fora a não ser sal e açúcar.  Lixo espalhado não há. 


Ao fim da ordenha, o leite tirado segue pra casinha, é coado em pano, coloca-se o coalho e o pingo, espera-se mais ou menos uma hora e corta-se o soro para começar a moldar os queijos. Espreme, molda, passa sal, vira, recolhe o soro.  São poucos por dia, uns 16, que são vendidos para o queijeiro que passa ali da caminhão (melhor não dizer por quanto vendem).  Mas isto ocupa o dia todo. 

Está certo que Mara e eu ajudamos na cozinha, inventamos coisas, fizemos o trivial, mas gostoso mesmo era comer a comida da Romilda, com aquele cardápio todo colorido, feito com simplicidade, com o sabor de temperos comuns como o alho que ficava pendurado sobre o fogão e o cheiro-verde da horta. Mas aquele frango, aquela carne de lata na gordura de porco (carne na manteiga, como dizem por lá), aquele milho verde, o chuchu, a abobrinha, nem precisavam de tempero. Tudo tão fresco. 

No último segundo dia fomos pra cachoeira do Nego, um encanto protegido no meio do paredão da Serra da Canastra. Romilda não se lembrava da última vez que tinha tirado uma tarde assim, pra se divertir, embora nunca reclamasse do trabalho que ocupa o casal de domingo a domingo. Só a vi reclamando uma vez e não foi do trabalho, mas da falta de serviços de saúde na cidade, do aproveitamento financeiro dos médicos em cima do sofrimento alheio, do abandono do SUS etc. Fora isto, ela é feliz vivendo naquele sossego incrementado com o barulhinho da torneira que nunca se fecha bem na porta da cozinha. É muita água e quem não gosta dela quando só faz verdejar o pasto?  Saímos de lá e começou a chover muito.  Pelo telefone, quando voltei pra São Paulo, fiquei sabendo que o excesso de água quase levou a pontinha sobre um belo rio que passa pela fazenda. Não levou esta, mas outras três ao redor. E hoje, me contou Romilda, um carro estava lá encravado em frente à sua porta da sala. Atolou. 



Mara Salles não se aquietou enquanto esteve lá. Usou macaúba no arroz e fez testes com o soro do leite: para cozinhar ovos pochê, talhado com limão, fermentado sobre o fogão, no suco do maracujá.  Eu inventei de colocar cúrcuma, que ninguém usa,  na galinhada que a Mara improvisou com as sobras do frango e fiz sucos de manga verde, pura e com hortelã, que adoraram. 

Trouxemos queijos pra maturar e depois vou testar na receita do pãozinho que Romilda nos ensinou. Na hora de vir embora, muita choradeira e a promessa de voltar. Que cascar fora o quê!  Queremos mais é cascar dentro. 


João Vitor na hora da merenda no curral

Leite da teta da vaca para a merenda

Mara Salles chega com sua canequinha com café

Ô trem bom, sô!

O Perigoso, dia e noite de guarda nesta escada

Os queijos recém-moldados

Zé Mário veio conferir: ô Romilda, elas ainda não cascaram fora? 


Zé pão tira leite de quase 50 vacas, todo santo dia
Se for a São Roque de Minas, e eu recomendo, vá conhecer o casal Zé Pão e Romilda - na cidade qualquer um saberá informar. Mas é bom agendar antes: 37 9985-5295. E aproveite para comprar vários queijos que poderá deixar em casa maturando,  mas diga que quer pagar preço de turista, preço justo, por favor! 


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