Conheci lá o tucupi, o jambu, o coentro-do-pasto (chamam de chicória), a pimenta cumari-do-pará e um jeito novo de comer camarão seco. Tudo novidade. Aliás, tudo lá parece ser estrangeiro. E, no entanto, é uma das culturas mais autênticas deste país.
Quanto ao tucupi, fora do extremo norte do Brasil ele é praticamente desconhecido e quando aparece aqui em São Paulo é vendido a preço de fina iguaria, o que realmente é. Mas no local de origem, é ingrediente corriqueiro, barato e indispensável. Com ele se faz este tacacá que tomei no Marajó e é o caldo mais popular e desejado nos fins de tarde, em Belém. Na cuia a vendedora coloca, à frente do freguês, uma concha de tucupi tirado de um grande caldeirão de alumínio bem areado e outra de mingau neutro de goma, feito com o amido da mandioca. Alguns camarões e um punhado de jambu - a erva que amortece e faz fremir lábios e língua - completam a sensação.
Há várias maneiras de se extrair o suco da mandioca ou manipueira, base do tucupi. Podem ser usadas prensas manuais de parafuso ou prensas hidráulicas. E, para pequenas quantidades, a raiz ralada pode ser espremida num pano. Mas, apesar das novas tecnologias de prensagem, um utensílio já encontrado aqui pelos europeus sobrevive ainda hoje. É o tipiti, usado na transformação artesanal da mandioca em farinha, goma e tucupi. Trata-se de uma bolsa cilíndrica, comprida, feita de palha, num trançado que a faz retrátil, como possuindo molas. Dentro se coloca a massa de mandioca ralada, que é espremida quando o tipiti é tracionado. Da massa enxuta se faz a farinha e o líquido escorrido será a base do tucupi. A princípio leitoso, este caldo (manipueira) torna-se de um amarelo límpido assim que o amido (fécula, polvilho ou goma) sedimenta no fundo do recipiente. Depois de fermentado por um ou dois dias e fervido com alho, alfavaca, pimenta-de-cheiro e chicória (o coentro-do-pasto), se transforma no molho tucupi, de aroma penetrante e sabor ácido inconfundíveis.
A coloração do tucupi é dada pelos pigmentos betacarotenos presentes na mandioca amarela, variedade mais indicada para o preparo do molho, justamente pela cor. Mas a mandioca branca também rende bom tucupi, conhecido como tucupi-doce. Está certo que o sabor é muito mais delicado e a cor, mais desbotada. Mesmo assim, há quem o prefira para o preparo do tacacá e de um bom mingau de arroz para se comer no café da manhã. Aliás, a cor amarela do tucupi muitas vezes é intensificada com a adição de corante artificial. Para identificar a adulteração basta ver se o amarelo é uniforme. No verdadeiro, o pigmento tende a se acumular no fundo da garrafa, deixando uma faixa mais clara próximo à superfície. Menos difundido nas cidades, o tucupi-pixuna ou tucupi-preto é um molho denso, concentrado e escurecido depois de demorada redução. Acompanha patos, carnes e peixes.
No mercado Ver-o-Peso, em Belém, pilhas de tipiti e litros e mais litros (garrafas de PET reaproveitadas) de tucupi em vários tons de amarelo forte, às vezes com pimentas imersas, mostram a importância do molho na cozinha local. Além de ser usado no tacacá, ele tempera carnes de sabor marcante - pato, peixe, leitão, paca. Talvez o prato mais famoso seja o conhecido internacionalmente Pato-no-tucupi (assado, separado de sua gordura e fervido com tucupi e jambu). É um bom exemplo da cozinha regional, saborosa, leve e marcada pela pouca influência européia sobre a predominância indígena.
Como me recuso a pagar R$ 10,00 por uma garrafinha de tucupi congelado que se encontra às vezes no Mercadão, faço o meu próprio. É fácil, veja:
Pique 3 quilos de mandioca amarela e bata, aos poucos, no liquidificador com 1 litro de água. Faça isto aos poucos. Coloque quanto de água for necessário para a primeira leva. Coe, esprema num pano e volte o líquido ao liquidificador com mais mandioca. Faça assim até terminar. Quanto menos água usar, melhor. O ideal é ralar e espremer, mas e tempo? Por fim, esprema de novo tudo num pano de algodão limpo. Torça bem para extrair todo o sumo.
Espremendo num pano de algodão
Aqui, a goma sedimentada no fundo do recipiente - é só separar.
Deixe esse líquido leitoso (manipueira) descansar por 4 horas, ao fim das quais separe o amido sedimentado do líquido amarelo (o amido é a goma, que pode ser seca ao sol para virar polvilho ou ser usada ainda úmida para fazer tapioca ou o mingau de goma que compõe o tacacá.
A manipueira (o caldo) já fermentada - veja umas bolhinhas na superfície.
Cubra com pano o líquido e deixe fermentar de um dia para outro. A este líquido fermentado, adicione um pouco de sal, um dente de alho, uma pimenta-de-cheiro, alguns galhos de alfavaca e a chicória (coentro-do-pasto). Deixe ferver por 30 minutos, coe e está pronto o tempero para ser usado em peixes, galinhas e patos. Guarde na geladeira por até 1 semana.
Para o Tacacá, faça assim: Junte água fria àquele amido sedimentado na tigela, na proporção de 1 xícara de goma para 2 litros de água. Misture bem e leve ao fogo, mexendo, até engrossar. Este é o mingau de goma. Numa cuia coloque uma concha de mingau, outra de tucupi bem quente, alguns camarões secos demolhados e escorridos, um punhado de jambu cozido e espremido e pimenta. Igualzinho, igualzinho, ao paraense, não fica. Mas garanto que ameniza o desejo de estar lá.
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Só neste post, quatro ingredientes de uma só espécie vegetal. Mas tem muito mais. Talvez, mais apropriado que comemorar o dia do Descobrimento do Brasil, afinal já estava pra lá de descoberto, seja mesmo celebrar hoje o Dia da Mandioca, instituído...