Comida Saudável
Uauá. Parte 4: As plantas e as gentes na terra do sol
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Joana colhe alecrim do campo na estrada para varrer e perfumar a casa |
Num lugar onde pouco chove, nada é mais verdadeiro que o dito de Joana: a vida é passageira como a chuva. Por isto ela diz não guardar mágoa. Motivos teria, mas diz que lutará até ficar velha de bastão para que o bem coletivo se sobreponha aos interesses pessoais, que nem são tão pessoais assim, afinal foi uma das pioneiras no trabalho com umbu como produto e ajudou a fundar a cooperativa quando ninguém acreditava na empreitada. Era chamada de louca, diziam que não ia dar em nada. Na hora se ofendeu, mas não desanimou, lutadora que é. Ao contrário, seguiu agregando gente. Suas comadres moram longe longe, mas quando se vêem é como se fossem vizinhas de grito. Aliás, era no grito que ela chamava o compadre que morava longe da fazenda quando precisava de ajuda com as crianças. Ficar viúva aos 28 anos com quatro filhos e morando no Caititu, depois do rio da Zefona, naquela aridez toda, não era pra qualquer fracota. Mas, fazendo manuê e lidando com umbu, criou dignamente os filhos e ainda botou todos na faculdade.
Joana fica na fazenda a poucos quilômetros de Caratacá, um povoado de Uauá, mas estava na cidade para o festival do umbu. No sábado, ficou no show até tarde da noite, mas estava ansiosa para colocar o milho de molho para o manuê de domingo. Cinco quilos de milho que no dia seguinte são escorridos e triturados para virar manuê, um bolo assado em forno de lenha que não leva nada além de milho e açúcar. Quando chegamos na fazenda, ainda bem cedo, o manuê já estava a caminho.
No dia em que passou novamente pela cidade, a ânsia era pra voltar pra roça a ver se o boreguinho que tinha acabado de nascer estava bem. E precisava dar comida ao cachorro e regar as plantas que não se viram sozinhas, como a pequena brilhantina que cultiva porque cura cólica mas também por ser graciosa, parecendo uma miniatura de umbuzeiro - com a pouca água de que dispõe na cisterna e o pequeno açude já com água bem próxima do barro, fala das três ou quatro plantas ornamentais quase com culpa.
Eu aproveitei cada minuto de sua companhia, mas foi pouco. No carro, ela ia me mostrando a paisagem e contando estórias. Jussara e Marquinhos também sabem muito e tinham paciência quando pedia para parar o carro, pegar folhinhas, anotar no caderno. Mas Joana tem aquela sabedoria que a gente da caatinga e de outros sertões do Brasil ganha com as circunstância da vida.
A paisagem da caatinga tem uma beleza estética pouco comparável a tudo que já vi e o céu é de um azul tão extravagante, só descontinuado pelas nuvens de branco neve que iludem o olhos grudando a galhos secos, que é fácil se distrair e esquecer o verde. Mesmo sem poder ocultá-lo ou chapar em branco como o céu de Glauber Rocha no Deus e Diabo na Terra do Sol, gravado naquela caatinga, tentei me concentrar na flora.
Este é o pau-de-rato ou catingueira, diz ela, que joga fora as folhas na seca extrema, para evitar perder água. Assim que caem umas gotas de chuva, as folhinhas verde claras brotam para colorir a caatinga e logo vêm também as flores que deixam tudo amarelo e ainda servem de comida para os animais. Mas não se iluda com a seca verde, antes das flores, continua. Às vezes a água é tão pouquinha, que verdeja as catingueiras mas não chega a produzir alimento para os animais. Ao contrário, às vezes até mata os matinhos que já havia porque não chega a molhar o chão - apenas umedece o que está quente, que acaba apodrecendo. E esta água não é suficiente para fazer germinar as sementes destas ervas que levam até 8 dias pra despontar, se tiver água constante. Foi mais ou menos isto que Joana e Jussara me contaram.
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Cactos da caatinga |
Anda descalça não, menina! Joana diz pra neta Joaninha. Pergunto o porque, já que também gosto de andar na terra. Pode, não, responde. O bode fura com as pontas o xique-xique, a cabeça-de-frade e o mandacaru-de-facho pra comer o miolo. Não é bobo, come só o miolo. Os espinhos caem no chão, vão pro seu pé e saem rasgando, me assustou.
E como tem espinho! Tá vendo este espinho da favela? Tem um leitinho venenoso aí dentro. Se encosta nela, é uma coceira danada, alertou. De longe, a faveleira se destaca entre a vegetação seca com suas folhas escuras, formato de azevinho, mas os espinhos na frente e no verso das folhas fazem medo. Tem bicho que gosta de faveleira, diz Joana. Ah, mas é lagarta. Come tudo as folhas dela, ficam peladinhas. E quando estão nuas em galhos, as lagartonas aparecem, quase um palmo de tamanho, listrada, bonitas, mas também assustadoras. Sorte que tem o pai-de-lagarta de predador. Se escapam, viram umas borboletas lindas, listradas, vermelhas, arco-iris.
Pergunto se não tem gado, não tem porco, pois só bode eu vi. Ah, pois, começa Joana, ninguém por aqui quer criar mais gado, não. Morrem todos os bichinhos, de fome e de sede. E porco ninguém quer também, dá muito problema com os vizinhos, eles invadem as propriedades, comem a comida dos bichos dos outros, a raiz da favela, e também impistia a criação, que dá um toca, emagrece, morre. Dá o verme do porco nos bichos, que secam, torram, morrem.
Bode é que é bicho danado bom pra caatinga. Come de tudo, adora umbu, as folhas do umbu e qualquer coisa verde. Na seca ele também sofre, mas Deus é sábio que colocou na caatinga plantas que são a refrigela dos bichos na seca, diz Joana. A gente corta e dá pros bichos ou eles pegam sozinhos, palma, juazeiro, quixabeira, mandacaru de boi, palmatória que a gente sapeca, e tantas outras.
No caminho para a fazenda, atravessamos o rio Zefona (nome da avó) ou Cariacá, que agora é apenas uma vala por onde passa carro. E quando chove? pergunto. Que chuva, mulher? responde Marquinhos. Ué, uma hora chove. Ah, quando chove é só esperar do lado de lá ou do lado de cá. Em oito dias passa. Mas não teria que ter uma ponte? Teria, né...
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Pau-de-rato, faveleira, flor de maracujá-da-caatinga, macambira, cansanção, mussambê, pinhão bravo, joá, pega-pinto, caroá |
Jussara quando criança pegava a mesma trilha de hoje de Caititu para o povoado de Caratacá para ir a escola e no caminho ia comendo mocó de macambira, o broto de uma bromélia com muitos espinhos que eu tive o privilégio de conhecer quando enrosquei o pé numa moita. Um espinho pra cá e outro de encontro formando pares de garras - você solta a pele de um, o outro gruda. Dona Joana conta que na guerra de Canudos, a turma do Conselheiro atraia para os maciços de macambira a tropa de soldados, que ali ficavam enganchados. Infelizmente, estas armas naturais logo se mostraram frágeis frente ao poderio de fogo do exército. Provei o mocó de macambira pelas mãos do Isaias. Adocicado e crocante como um palmito novo, é uma delícia.
Para, para o carro, deixa eu mostrar a caroá pra Neide, exige Joana. Aqui, ó, é com as fibras dela que se faz o bogó de carregar umbu. A flor salmão e gorda foi pro caderno, mas as folhas da bromélia são compridas e só vieram comigo nas fotos. O bogó é um saco trançado para carregar qualquer coisa.
E la não para de ensinar. Isto aí que cê tá tirando foto é a malva branca, é bom pra garganta, a raiz é pra inflamação, pra banho. Na garganta, a gente até sente a carne se unir, diz Joana como grata pela dádiva. Ali é o papu, este lagarto. Tem gente que leva o apelido de papu-do-rabo-toco, quando é assim meio atarrancado. Viche, não chega perto do pega-pinto, este ai de flor maravilha, que ele tem uma pecinha que gruda em tudo. Os pintinhos ficam todos cobertos quando passam perto. Neide, cheira aqui o velame! Olha que perfume! A gente bota na carne do bode pra transportar. E o bode também come e a carne fica muito boa, não apodrece.
Em outra viagem, Joana para para colher alecrim-da-caatinga diferente do alecrim-do-reino, bem cheiroso, bom para banhos, perfumar a casa e varrer o terreiro. Aproveita pra me mostrar o mussambê e o cansanção - não queira levar uma surra de cansanção, que coça, arde, queima.
E o pinhão bravo , que tem por todo canto, é medicinal como quase todas as plantas de lá e Joana dizia que tinha que ter moderação pois também é perigoso, mas tem uma outra utilidade que me fez trazer muda e ficar com vontade de virar artista. A seiva misturada com carvão faz uma tinta preta que não desbota por até cem anos - na torra de madeira do telhado da casa de Joana está escrito com a tinta natural sem fixador a não ser a seiva: "assentou esta linha em 1918"!
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Algaroba na calçada de Uauá |
Logo no primeiro dia do festival me chamou a atenção a uniformidade da árvores nas calçadas de Uauá. Todas algarobas, disse Joana, não nasce nada em volta. Um prefeito plantou, mas a planta não é daqui, é exótica, se espalhou, pode acabar com as plantas da caatinga, gente que não pensa antes de fazer as coisas, completou. Pelo menos aproveitam a lenha para o fogão, que ela agora podem cortar.
Além do umbu, tem outras frutas que Joana, Jussara e Joaninha, vão me contando, me mostrando, me ensinando a comer, nem sempre ao vivo. O fruto do xique-xique é rosa choque, chique, docinho em fios. Tem as bolinhas pretas e doces da quixabeira, tem o juá, a frutinha da cabeça-de-frade e um monte de frutas de cactos.
Agora, a caatinga de Joana não é só isto de conhecer plantas. Ela nem sabe que tanto sabe. Também reza, faz e declama poesia, compõe e canta músicas, improvisa, inventa palavras e frases cheias de ritmo e graça. Mas, não sabe porque, se embaralha com a palavra árvore e isto a deixava encabulada, achando que iriam caçoar dela. No poema sobre umbu que compôs com o irmão e que ganhou o concurso do festival, teria que ler em três momento o trecho "a árvore" e o problema era o artigo que a fazia perder a cadência. Carol e eu a convencemos de que poderia pular a palavra porque ela era a própria árvore do poema - de umbu, de felicidade, de resistência e sabedoria.
As folhas do meu caderno dedico à Joana Maria de Souza.
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