O que causa doença cardíaca? Parte 1
Comida Saudável

O que causa doença cardíaca? Parte 1


Artigo traduzido por Décio Gazzoni. O original está aqui.

por Malcolm Kendrick





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Estive meio quieto neste blog por um período. Principalmente porque estou escrevendo 10.000 palavras sobre a verdadeira causa das doenças cardíacas. Claro, por doença cardíaca, me refiro ao engrossamento e estreitamento das maiores artérias do corpo (placas ateroscleróticas). Também estou focando quase completamente nas artérias que fornecem sangue ao coração (artérias coronárias), e as artérias principais que fornecem sangue ao cérebro (artérias carótidas).

Embora placas ateroscleróticas possam se desenvolver em outras artérias que fornecem sangue, por exemplo, aos rins ou intestinos, problemas nesses órgãos são em geral menos comuns e menos graves – mas nem sempre. Em geral, no entanto, as ‘doenças cardíacas’ fatais principais são ataques cardíacos e derrames (não todos os tipos de derrames, apenas o tipo mais comum, o derrame isquêmico). Portanto, mesmo correndo o risco de ser ao mesmo tempo excessivamente pedante e impreciso, passarei a chamar doença cardíaca de Doença Cardiovascular (DCV), e considerarei os ataques cardíacos e derrames.

Dito isto, o que causa doença cardiovascular (DCV)? Embora tenha me tomado apenas alguns dias de pesquisa, há muitos anos atrás, para perceber que a hipótese dieta-coração/colesterol é claramente absurda, eu levei 30 anos para descobrir o que efetivamente acontece. Na realidade, não consegui progredir de verdade até abrir os olhos para o fato que eu não deveria procurar por causas, porque seria perda de tempo.

Quando você começa a procurar por causas, você descobre que não existe quase nada que um ser humano possa ingerir, ou fazer, que não seja uma causa ou cura alegada para DCV. Em muitos casos, ambos... simultaneamente. Em 1981, um artigo foi publicado no periódico Atherosclerosis que listou centenas de possíveis ‘fatores’ envolvidos na causa ou prevenção de DCV. Hoje, se você procurar no Google ou Pubmed, posso garantir que você encontrará milhares de diferentes fatores. Isso, claro, se você se der ao trabalho.

Se você se der ao trabalho, qual a possível lógica que você poderia encontrar por trás de dez mil diferentes fatores relacionados a DCV de uma forma ou de outra? É possível que todos sejam verdadeiros fatores de risco? Alguns deles certamente serão meras associações, não causas. Alguns são simplesmente aberrações estatísticas, encontradas em um estudo e contestadas em outro. Mesmo que estes sejam removidos, ainda sobram tantos, muitos mesmo. Escolha o seu favorito e proclame para o mundo. Vitamina K, vitamina D, café, vegetais verdes folhosos, ácidos graxos ômega 3, gorduras monoinsaturadas de cadeia intermediária, agentes de aumento de HDL, selênio, redução de homocisteína... e assim por diante.

Existe alguma outra hipótese que requer que você ache um lugar para dez mil diferentes fatores? Não, não existe. Isso não impediu que se continuasse identificando mais e mais coisas. Esse é o meu motivo, a meu ver, de termos uma bagunça tão grande. Eu às vezes me divirto observando as confusões em que a hipótese do colesterol se mete. Só para dar um exemplo: já faz algum tempo que temos o colesterol ‘bom’ e o colesterol ‘ruim’. Recentemente, surgiu o colesterol ‘bom ruim’ (aumento de HDL associado a um aumento de risco de DCV na menopausa), e colesterol ‘ruim bom’ (LDL grande e flutuante que protege contra DCV). Isso sim é que eu chama de uma hipótese não-refutável. Um fator de risco pode ser bom, ou ruim. Ou ‘ruim bom’ e ‘bom ruim’. Enquanto eu refletia sobre essas baboseiras, me ocorreu, em um momento de obviedade ululante, que para compreender a DCV eu precisa deixar de tentar encaixar dez mil fatores no maior quebra-cabeça intelectual da história da humanidade, e seguir adiante. Eu precisava saber qual era o verdadeiro processo. O que estava efetivamente acontecendo nas artérias.

Logo que você começa a olhar para a DCV por esta perspectiva, você subitamente descobre que muito pouco foi escrito a respeito. A mundialmente famosa bíblia da cardiologia ‘Braunwald’s Heart Disease’ não fala virtualmente nada sobre isso. Ou pelo menos era o caso quando eu a consultei há alguns anos atrás.

Em um livro gigantesco sobre doença cardíaca, o processo de desenvolvimento da DCV é tratado em menos de meia página. A hipótese do colesterol em si geralmente fica sem explicação alguma. Ou existem profundas lacunas e detalhes que você precisa aceitar na fé. O LDL aumentado vaza/percorre/se insere na parede da artéria onde cria uma inflamação e as placas se desenvolvem. Fim.

E então você começa a perguntar: por que placas nunca se desenvolvem em veias? Mesma estrutura das artérias, mesmo nível de LDL. Por que placas nunca se desenvolvem nos vasos sanguíneos do pulmão (artérias e veias pulmonares)? O que o LDL oxidado tem a ver com isso? Onde ocorre a oxidação? Como o LDL vaza para as artérias coronarianas, e artérias carótidas, mas não consegue vazar para dentro de artérias do cérebro em si?

Perguntas, perguntas, perguntas e quase nada de respostas decentes. Existe uma espécie de histeria coletiva, com muita gente dizendo ‘é o que acontece e pronto’ quando você começa a perguntar ‘Explique de novo, como o LDL entra na parede da artéria. Passo a passo, por favor’. Normalmente a reação é de uma lógica anti-Popperiana perfeita. Sabemos que o colesterol aumentado causa doença cardíaca, então ele deve entrar na parede da artéria através de algum tipo de mecanismo. E veja, existe colesterol em placas ateroscleróticas. Então ele tem que entrar lá.

Claro, é verdade que você encontra colesterol em placas ateroscleróticas. Ninguém vai negar isso. Mas você também encontra, por exemplo, glóbulos vermelhos. Pode ser que você consiga explicar como o LDL pode atravessar as células endoteliais (as células que revestem as artérias) de alguma forma. Porém, eu argumentaria que, se é assim, então por que o LDL não atravessa as células endoteliais das veias? E porque ele não atravessa as células endoteliais, ou entra no meio delas, nas artérias do cérebro?

Afinal, o tamanho das moléculas de LDL é mínimo se comparado a uma célula endotelial. No entanto, glóbulos vermelhos e células endoteliais são praticamente do mesmo tamanho. Então, tente explicar pra mim como um glóbulo vermelho aparece dentro da parede da artéria, sob o endotélio. Tente fazer com que uma célula, praticamente do mesmo tamanho que outro, atravesse por ela. Um belo truque de fato.

Então, se você começa a explorar a fundo, você descobre que o colesterol que você encontra em placas ateroscleróticas quase certamente provém das membranas ricas em colesterol dos glóbulos vermelhos.

A noção que macrófagos apoptóticos (macrófagos mortos) são a fonte predominante de colesterol em lesões (ateroscleróticas) progressivas está sendo posta em questão conforme novas linhas de evidência sugerem que membranas dos eritrócitos contribuem uma quantidade significativa do colesterol livre em placas [1]

Olha só, parece que o colesterol não vem do LDL. Estou colocando a carroça na frente dos bois, e me arrastando de volta para a explicaçãoo de por que a hipótese do colesterol é absurda. O que não passa de jogar o jogo no campo e com as regras do adversário.

O fato é que, para substituir a hipótese do colesterol, é preciso surgir com algo melhor, que efetivamente se encaixe nos fatos. Isso, é claro, é um tanto mais complicado já que existe um monte de fatos. Além disso, alguns deles parecem totalmente desconectados entre si.

A minha crença simples é que, se a sua hipótese não consegue explicar tudo sobre DCV, então você não consegue explicar nada. Ao afirmar que consegue, você acaba sugerindo que existem muitas causas e processos diferentes, e que todos acabam causando DCV através de mecanismos não-conectados. Bom, se isso for verdade, então nós temos que desistir. Fumar causa DCV desta forma, LDL causa daquela outra forma, diabete de uma maneira completamente diferente.

É por isso que eu fico tão frustrado quando as pessoas simplesmente dão de ombros em um debate sobre DCV, e se escondem atrás de uma lógica impossível de ser debatida ao dizer que DCV é ‘multifatorial’. Ao qual eu respondo que sim, é lógico que é multifatorial (como são todas as doenças). Mas esta afirmação em si não faz sentido, a não ser que você possa me dizer como os múltiplos fatores se encaixam em um processo unificado.

Resumindo, na DCV, se você vai tentar explicá-la, você precisa ser capaz de explicar como, por exemplo, os seguintes fatores aumentam o risco, e através de qual (único) mecanismo ou processo. [Esta não é uma lista exaustiva de forma alguma, mas todos essas são causas bem fortes e definidas]:

  • Artrite reumatóide
  • Uso de esteróides
  • Lúpus Eritematoso Sistêmico
  • Tabagismo
  • Doença de Kawasaki
  • Uso de antiinflamatórios não-esteróides como ibuprofeno, naproxeno e outros
  • Trabalhar em minas profundas de carvão – especialmente na Rússia
  • Uso de cocaína
  • Envelhecimento
  • Acordar mais cedo – especialmente nas segundas-feiras
  • Diabetes tipo 2
  • Nível aumentado de fibrinogênio
  • Síndrome de Cushing
  • Poluição do ar
  • Estresse físico ou psicológico agudo
  • Doença renal crônica
  • Avastin – uma droga para câncer

Veja um destes fatores de risco, Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES). Mulheres jovens com esta condição apresentam, em alguns estudos, um aumento no risco de DCV de 5.500%. Compare esse valor com, por exemplo, LDL aumentado. Mesmo que você acredite que ele aumenta o nível de DCV, o que é discutível, o aumento no risco (conforme definido pela pesquisa em voga) é de 66% para um aumento de 3 mmol/l (115 mg/dl) no nível de LDL [2]. Ao mudar o nível de LDL por esta quantidade, você sai de um nível baixo de risco para hipercolesterolemia familiar.

Se aceitarmos que o valor de 66% está realmente correto, podemos ver que LES aumenta o risco 83 vezes mais que ter um nível muito alto de LDL. Ou, para colocar isto de forma, LES aumenta o risco de DCV por 8.300%. Claramente, portanto, LES tem muito mais a nos dizer sobre a real causa de DCV do que níveis aumentados de LDL jamais poderiam dizer. Empregados de minas profundas de carvão na Rússia sofrem o seu último e fatal ataque cardíaco com uma idade média de 42 anos. Crianças com doença de Kawasaki podem morrer de ataque cardíaco aos 3 anos de idade.

Aqui, portanto, estão as verdadeiras causas de DCV. DCV super acelerada, com pessoas morrendo novas. Sem a necessidade de joguinhos estatísticas. É aqui que podemos encontrar as verdadeiras respostas. Mas agora vem a parte difícil. Como encaixar tudo dentro de um único processo de doença, sem encontrar contradições?

Senhoras e senhores, me levou trinta anos.

Referências


  1. https://www.researchgate.net/publication/5958670_Free_cholesterol_in_atherosclerotic_plaques_Where_does_it_come_from
  2. http://www.jbs3risk.com/pages/impact_intervention.htm



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