No guia de identificação "Peixes Marinhos do Brasil, de Marcelo Szpilman, aparece que a moréia-pintada (Gymnothorax moringa) pertence à ordem Anguilliformes e familia Muraenidae; pode ser encontrada em todo o Atlântico (no Brasil é rara no Sul); habita costas com rochas e corais e gosta de ficar entocada durante o dia para se alimentar de peixes, caranguejos e polvos à noite. Nervosíssima, fica ameaçando com a bocarra qualquer coisa que se aproxime de sua toca - a mordida dilacera, doi e infecciona. Veja aqui sua cara. Em compensação, sua carne é muito apreciada fresca ou salgada.
Descobri também em outros cantos que a carne é razoavelmente gorda e notei que depois de cozida se mantém suculenta mas ainda firme - e isto oferece um leque de opções na hora de preparar. Pode ser frita ou assada para ficar mais sequinha, mas preferi servi-la com molho mesmo tendo dourado os pedaços antes. O sabor é suave, lembra enguia. Pode ser preparada em postas ou em filés - algumas espinhas grandes da coluna que ainda restarem depois que os filés foram separados podem ser eliminadas com uma pinça própria.
Cigatera: o único senão é o potencial risco de cigatera, que ocorre quando se consome com a carne uma toxina produzida por uma microalga marinha chamada Gambierdiscus toxicus. Isto acontece com mais de 400 espécies de peixes que estão no topo da cadeia alimentar - peixes que comem outros peixes que se alimentam destas algas. Quando recifes corais onde vivem estas microalgas são perturbados (aquecimento, furações etc), pode haver uma aumento na produção destes microorganismos. Alguns peixes podem eliminar estas toxinas, mas não dá pra saber. Poucos minutos depois de ingerir o peixe contaminado, podem ocorrer vómitos, diarreia, sensação de formigueiro, ataxia e fraqueza, por exemplo. Felizmente a incidência é baixa (veja mais aqui); parece ocorrer mais no Indo-Pacífico, segundo esta tese e aqui em casa todos passam bem, obrigada. Como, certamente, vou comer moreias lá uma vez a cada morte de Papa, vou continuar arriscando. E, claro, se um dia for a Portugal, vou querer provar. Leia mais sobre a toxina, aqui.
O peixão pesou 2,5 kg, paguei por ele uma baguatela e deu para duas refeições para esta pequena família. O problema era o que fazer com ele. Como não achei nada nos livros a não ser identificação, resolvi arriscar. Primeiro fiz o que sempre faço quando não conheço um peixe - tirei um pedacinho, temperei com sal e pimenta-do-reino e dourei no azeite. Um cubinho joguei na água salgada. O sabor fica muito melhor quando o peixe é dourado na gordura. Mas não consegui ver este peixe distanciado de um bom molho e intuitivamente achei que as postas se sairiam bem numa sopa bem vermelha e quente.
E, hoje, com os filés fiz um prato rápido com molho de tamarindo, à moda indiana (googlei peixe mais os ingredientes que eu achei que deveria usar, incluindo minha polpa de tamarindo que comprei no Revelando São Paulo e me veio esta receita de curry, que não poderia ser mais adequada). Em menos de 40 minutos estava com o almoço pronto. Nas duas receitas, os pedaços de moreia foram previalmente dourados em gordura.
Como limpei
Cortei com tesoura a nadadeira anal e abri o peixe pela barriga. Tirei as vísceras e passei a faça no cordão de sangue junto à vertebra para rompê-lo. Esfreguei bem e enxaguei para tirar qualquer resquício sanguíneo. Cortei a nadadeira dorsal e fui puxando a pele, desprendendo da carne com uma faca bem afiada.
Metade do peixe usei para fazer postas, mantendo a vértebra. Da outra metade tirei dois filés que usei para fazer o curry. As espinhas do dorso podem ser tiradas com uma faca afiada ou com pinça própria para isto.
Sopa de moreia com legumes
800 g de postas de moreia sem pele
1 colher (chá) de sal ou a gosto
1 pitada de pimenta-do-reino
1/4 de xícara de azeite
6 dentes de alho cortados ao meio, de comprido
6 mini-cebolas cortadas ao meio (80 g)
10 mini-cenouras (150 g) inteiras1 pimentão-vermelho pequeno cortado em quadrados (130 g)
1 pimentão-verde pequeno cortado em quadrados (130 g)
1 talo de salsão picado (70 g)
1 alho-poró cortado em rodelas (70 g)
3 tomates inteiros picados em cubos
4 xícaras de caldo de polvo quente (ou caldo de peixe ou água) - usei o caldo daquele polvo
1 colher (sopa) de páprica defumada doce (pimentón de La Vera)*
1 colher (chá) de páprica defumada picante (pimentón de La Vera)
2 batatas médias descascadas, em rodelas grossas (400 g) 3 colheres (sopa) de salsinha
Tempere as postas de peixe com sal, pimenta-do-reino. Aqueça metade do azeite numa frigideira antiaderente e doure o peixe dos dois lados. Escorra bem e reserve. Em outra panela, aqueça o azeite restante e doure nele o alho e a cebola. Junte a cenoura, os pimentões, o salsão, o alho-poró e o tomate. Despeje o caldo de polvo, as pápricas e uma pitada de sal. Deixe cozinhar por 5 minutos. Junte as batatas e deixe cozinhar até ficar al dente. Junte o peixe e deixe ferver por 2 minutos. Prove o sal e corrija, se necessário. Se precisar, junte mais líquido para que fique com bastante caldo. Junte salsinha picada na hora de servir e, se quiser, polvilhe mais páprica defumada. Bom para comer com pão.
* Agora já pode ser encontrada no Santa Luiza. Mas, se não tiver, use páprica comum, que também vai ficar gostoso.
Rende: 6 porções
Curry de moreia (interpretação livre e solta daqui)
500 g de filé de moreia cortado em pedaços (tamanho da mordida) ou outro peixe de carne branca e firme
1 colher (chá) de sal
2 colheres (chá) de cúrcuma (açafrão-da-terra) em pó
3 colheres (sopa) de óleo
Meia cebola grande cortada em quadrados
1 pimenta verde ou vermelha; doce ou picante, picada (sugiro usar uma pimenta picante)
1 galho de folhas de curry*
1 colher (sopa) de feno grego
1 colher (chá) de sementes de mostarda
1 colher (chá) de cominho
1 colher (chá) de erva-doce
1 colher (chá) de grãos de coentro triturados
2 colheres (sopa) de pó de curry
3 colheres de polpa de tamarindo diluida em 300 ml de água (usei uma polpa concentrada e adoçada, mas, você também pode usar o suco de tamarindo ou a fruta cozida e passada por peneira - ou a pasta industrializada prensada, diluída em água)
Folhas de coentro a gosto
Tempere o peixe com sal e cúrcuma. Aqueça o óleo em fogo alto e doure aí os pedaços de peixe. Retire o peixe e coloque a cebola e a pimenta. Mexa e deixe murchar e ficar translúcida. Junte a pimenta e as folhas de curry. Quando as folhas começarem a secar, abaixe o fogo e junte o fenogrego, a mostarda, o cominho, a erva-doce e o coentro. Refogue, mexendo, até exalar um perfume de especiarias tostadas. Junte o pó de curry e mexa rapidamente. Junte o tamarindo diluído e deixe ferver por 2 minutos. Junte o peixe e cozinhe por mais 1 minuto. Prove o tempero e corrija, se for preciso, com mais sal e açúcar (a receita original não pede, mas minha polpa era adocicada e ficou excelente). Espalhe por cima folhinhas de coentro e sirva com arroz branco. Rende: 4 porções