Mas a meu favor, encontrei hoje um eficaz calmante perdido no passado. Uma experiência. Eu tinha quinze pra dezesseis anos e minha melhor amiga na época me convenceu a fazer baile de debutante coletivo no Palmeiras, clube do qual ela era sócia. Uma verdadeira pataquada que não condizia em nada com os costumes da família de periferia.
Mas eu trabalhava, tinha meu dinheiro e banquei até o terno do meu pai. Uma semana antes do baile, com Toni Ramos novinho paraninfo, teve uma recepção e todo mundo deveria ir de vestido longo. Era só para as meninas, mas alguns pais foram levar e buscar as filhas. Achei mico pedir pro meu pai chegar lá com seu velho aero-willys (que hoje acho lindo), então fomos de taxi com a mãe da amiga e voltaríamos da mesma forma, só que sozinhas.
Acontece que depois do coquetel os pais de uma menina perguntaram onde morávamos. Como quase todos por ali moravam do lado de cá do rio, julguei poder melhorar um pouco nossa condição, afinal muitos jovens que moram na periferia abreviam alguns quilômetros em direção ao bairro mais próximo e que esteja numa hierarquia de aparências superior. Rio Pequeno é Butantã; Jaguaré é Parque Villa Lobos, Brasilândia é Freguesia do Ó e assim vai. Respondi, então:
Freguesia do Ó! -
Ah, que bom, também moramos lá e damos uma carona. -
Não precisa, não precisa. Por favor, não precisa. -
De jeito nenhum, nós levamos vocês. Foi chegando a Freguesia do Ó junto com uns calafrios de medo e orgulho. A amiga me olhava assustada, mas eu estava no domínio da situação. Se ainda fosse Itaberaba, que é o bairro próximo, poderia dizer que, bem, é quase Freguesia. Mas não, morávamos bem depois, num lugar que nos envergonhava (mais a mim, talvez). E o homem me pressionando: -
Onde é? Aí começou a piorar, a Freguesia estava ficando pra trás e aquilo tinha que acabar.
- Vira aí, agora à esquerda. -
Você mora aí? -
Não, é uma tia, vamos dormir na casa dela. -
Agora à direita, à esquerda. Pronto, podem deixar a gente aqui, que está perto. -
Não, me fala onde é. -
É logo ali. E eu fui ficando acuada e torcendo pra que alguma coisa muito grave acontecesse, tipo bater o carro, sei lá, para acabar logo aquela situação, mas nada de milagres. A amiga, nem se fala, com olhões verdes assustados. Até que caímos numa rua sem saída. -
Pronto, é esta casa. Obrigada, boa noite, tchau (em off:
suma logo antes que alguém acorde, algum cachorro lata). E o homem lá.
- Podem ir, que eu tenho chave, obrigada! Não sei como consegui convencê-los a não nos esperar a abrir a porta. Ficamos ali, paradas, sem palavras, quase meia noite, vestidas de longo na porta de um desconhecido. Esperei um pouco o carro sumir e saímos caminhando arrastando as barras e nos equilibrando nos saltinhos até uma avenida, no escuro, à procura de um taxi, que demorou a passar.
Chegamos em casa assutadas, não contamos pras mães nem conversamos sobre isto. Hoje consigo rir - por favor, fique à vontade pra rir, porque é pra rir. Durante alguns anos tentei esquecer esta estória. Mas uma coisa tinha ficado acertado em mim. Nunca mais mentiria sobre o que sou, quem eu sou, onde moro, de onde venho, quem são meus pais, sobre minhas qualificações etc. Não prometo mais nada que não possa cumprir, fora os desafios possíveis. Isto traz uma segurança grande.