Carne vermelha, de novo
Comida Saudável

Carne vermelha, de novo


"Estudos observacionais e epidemiológicos capturam os vieses, o zeitgeist, os preconceitos de uma época, e o reproduzem. Mais do que isso, embora não possam estabelecer causa e efeito, acabam sendo interpretados de forma a reforçar a causa presumida daquilo que estudam, sob a ótica dos preconceitos e diretrizes vigentes."


Estou recebendo enxurrada de mensagens sobre a decisão da OMS de categorizar carnes processadas como carcinogênicas e carne vermelha como possivelmente carcinogênica.

Tudo o que eu precisava escrever sobre isso, já escrevi há 6 meses na seguinte postagem, que você deve ler agora:

CLIQUE AQUI


Leu? Ok, então é preciso que fique claro que trata-se de estudos de associação, que não podem estabelecer causa e efeito.

Agora, vamos refletir: o que exatamente aconteceu? A OMS dirigiu-se especificamente à comunidade low carb? Aos seguidores de dieta páleo? Quer dizer que o resto da população não vegetariana NÃO come carne, e por isso as pessoas ficam re-enviando essa notícia para quem evita pão e açúcar?

Pergunto isso pelo seguinte: dentro dos princípios básicos que regem uma dieta páleo low carb, onde está o item no qual consta "você comerá grande quantidade de carne vermelha e bacon todos os dias"? Não lembro de ter visto essa recomendação. Você pode comer low carb, páleo, sem jamais colocar carne vermelha ou embutidos na boca. Literalmente, você pode comer exclusivamente peixe como sua fonte de proteínas. Seja você seguidor de low carb, ou não.

Reproduzo, aqui, o resumo das orientações de páleo low carb:

1) Cortar açúcar;
2) Eliminar grãos (especialmente trigo e soja);
3) Evitar raízes ("tubérculos", em especial batatas) se você precisa perder muito peso (caso contrário, não);
4) Optar por comida de verdade;
5) Não consumir gorduras artificiais (margarinas) e evitar as refinadas (óleos extraídos de sementes);
6) Perder o medo da gordura natural dos alimentos;
--> PERGUNTO: onde está o mandamento "coma bacon"? Onde está o item "sua carne deverá ser VERMELHA"?

Dito isso, a comparação com o cigarro, feita na mídia, é absolutamente ridícula. O cigarro aumenta em 20x (2.000%) o risco de câncer de pulmão, e preenche os critérios de Bradford-Hill para CAUSALIDADE. Já a carne vermelha mostra apenas uma fraca associação, está LONGE de preencher os critérios de causalidade, e o aumento de risco relativo de 1.18 (18%) para cada 50g de carne é, na verdade, um aumento de risco absoluto de 8 casos a cada 100.000 pessoas, ou 0,008% de risco absoluto (veja abaixo, no texto). Repito, desconsiderando completamente a pletora de motivos pelos quais tal estatística não é confiável (explicadas no final dessa postagem), mesmo que os dados fossem reais, comer uma porção a mais de carne aumentaria seu risco de desenvolver câncer de intestino em 0,008%. Sinceramente, isso torna a carne uma coisa extremamente segura!

Assim, se você - a despeito do fato de que os estudos são epidemiológicos, não estabelecem causa e efeito, e mostram magnitudes de efeito pequenas - decidir que ficou com medo de comer carne vermelha e embutidos, simplesmente não coma. E tanto faz se você comer low carb ou não. Comer salame ou bacon sempre foi uma opção por sabor, nunca por saúde. Alguém que faz low carb e come salame, o faz porque pode comer essa delícia e continuar a perder peso, ninguém nunca disse que o salme é o segredo da longevidade!

A Regiany Floriano, do blog Menos Rótulos, traduziu excelente análise da sempre sagaz Zoe Harcombe sobre esse assunto, que reproduzo abaixo:

"Organização Mundial de Saúde, carne e câncer. Artigo original aqui.

Hoje, 26 de outubro de 2015, a Organização Mundial de Saúde declarou o consumo de carne vermelha como sendo "provavelmente cancerígeno para os seres humanos, com base em evidências limitadas de que o consumo de carne vermelha causa câncer em humanos" e declarou a carne processada como "cancerígena para os seres humanos, com base em provas suficientes em humanos de que o consumo de carne processada provoca câncer colorretal. "A associação com a carne vermelha foi observada principalmente para câncer colorretal.

"Os peritos concluíram que cada porção de 50 gramas de carne processada ingerida diariamente aumenta o risco de câncer colorretal em 18%."
A partir da manchete "carcinogenicidade do consumo de carne vermelha e processada", já pulamos para câncer colorretal (intestino) e a palavra "provavelmente".

O comunicado de imprensa está aqui. O artigo da Lancet está aquiou aqui(pode não ser visível gratuitamente por muito tempo).
Então, nós precisamos parar de comer carne vermelha e /ou carne processada? Vamos dissecar a manchete com mais precisão:

1) De onde esses dados vêm
O padrão ouro de evidência é uma meta-análise de estudosrandomizados controlados - agrupamento em conjunto de estudos onde uma intervenção foi comparada contra um grupo de controle para ver qual o impacto que A teve sobre B. Até onde sei, não há estudos de intervenção já feitos para testar o impacto de 50 gramas de carne processada por dia, como uma intervenção isolada, ou qualquer quantidade de carne processada ou vermelha como uma única intervenção para esse assunto.

Estamos olhando, assim, para estudos observacionais. Isto é, onde um grande grupo de pessoas (por exemplo, Estudo de Saúde das Enfermeiras ou e o Estudo de Acompanhamento dos Profissionais de Saúde) são submetidas a muitas perguntas e testes de saúde (pressão arterial, peso, altura, colesterol, etc) no início do estudo. Isto é chamado de linha de base. Essas pessoas são, então, seguidas por anos para ver que condições elas passam a desenvolver.

Os pesquisadores então examinam os dados para tentar ver os padrões. Sem padrão = sem artigo publicado em revista científica, então precisa procurar bastante! Eles podem então observar um padrão entre as pessoas que consomem carne processada e as pessoas que passam a desenvolver câncer de intestino. Então este padrão é relatado em um artigo científico, e é assim com todos esses artigos que foram revisados pela Organização Mundial de Saúde.

O primeiro ponto a destacar, portanto, é que tudo isso é baseado em questionários dietéticos notoriamente não confiáveis. Muitos perguntam o que você comeu ontem ou nos últimos 7 dias. Aqui está um questionário da Investigação Prospectiva Europeia sobre Câncer, um dos melhores questionários possíveis, que pergunta, por exemplo, sobre a ingestão de alimentos durante o ano passado. Qual a precisão que você acha que suas respostas teriam?

2) Uma dieta versus um alimento
Ao destacar a carne vermelha / carne processadas deste modo, toda a dieta e estilo de vida de uma pessoa não é levada em conta. Há um mundo de diferença entre a saúde de um comedor sedentário de hambúrguer / cachorro-quente / ketchup / pão branco / refrigerante e uma pessoa que segue uma alimentação à base de carnes de animais criados a pasto / faz CrossFit / tem abdômen tipo tanquinho / segue Paleo.

Como mostrei nesta postagem, a linha de base para os comedores de carne processada mostrou que eles eram muito menos ativos, tinham um IMC mais elevado, eram três vezes mais propensos a fumar e tinham quase duas vezes mais probabilidade de ter diabetes. Isso faz com que a carne processada seja um marcador de uma pessoa não saudável, não um causador de uma pessoa não saudável.

Mesmo que todos os fumantes / praticantes de exercício / outros fatores de condições de base sejam matematicamente ajustados, não há possibilidade de ajuste para todos os fatores dietéticos que caracterizam a pessoa tipicamente sedentária versus o fã sarado de páleo. A dieta inteira não é ajustada quando uma linha única (carne) é traçada.

3) Alimentos reais versus alimentos processados
Eu sou uma verdadeira fã de comida. Eu praticamente passo a minha vida escrevendo e falando sobre comida de verdade e os nutrientes que ela contém. Eu sou a primeira a dizer "COMA comida de verdade. Não coma alimentos processados. E eu considero carne processada como alimento processado - algo a ser evitado”. No entanto, este relatório da OMS descreve carne processada como "carne que tenha sido transformada através de salga, cura, fermentação, defumação ou outro processo para realçar o sabor ou melhorar a preservação".

Como Peter Cleave, Cirurgião capitão, (1906-1983) disse: "Associar uma doença moderna à uma comida antiga é uma das coisas mais ridículas que eu já ouvi na minha vida." E pensar que a carne real, ou as formas naturais de conservar a carne de, sejam ruins para nós é ridícula. 1) Você teria que explicar como é que sobrevivemos os últimos 3,5 milhões de anos, desde Australopithecus Lucy, o primeiro que andava ereto; especialmente como sobrevivemos à Era  do gelo. 2) Você teria que explicar por que todos os nutrientes que precisamos para viver (gorduras essenciais, todas as proteínas, vitaminas e minerais) são encontrados na carne se ela estivesse tentando nos matar ao mesmo tempo.

A Carne precisava ser preservada naturalmente com a salga, cura, secagem, defumada, etc. ou você teria que devorar tudo o que caçou e correr o risco morrer de fome antes da próxima matança. O relatório da OMS deveria ter separado as formas tradicionais de conservação da carne daquelas fabricadas sob o processamento moderno (onde açúcares e produtos químicos são adicionados - basta ler o rótulo). Da mesma forma - se houver algum mal na carne vermelha, será porque os produtores têm alimentados os pobres animais com grãos que eles não conseguem digerir e, em seguida os bombardeiam com drogas para medicar a doença resultante. (Chris Kresser apresenta o ponto de vista sobre nitratos aqui, se você estiver interessado).

Esta deve ser uma chamada à ação para voltar ao seu açougueiro, conhecê-lo pelo nome, saber a procedência de sua carne, saber como ele prepara o bacon e salsichas artesanais e desfrutar dos benefícios de saúde da comida de verdade apoiando os produtores que a fornecem.

4) Associação versus causa
Mesmo levando em conta a fraqueza de estudos observacionais, a falta de confiabilidade dos questionários alimentares, a noção de que o consumo de alimentos pode ser um marcador não um promotor de saúde, e toda a ingestão dietética que não tenha sido levado em conta e a ignorância do abismo entre comida de verdade e processados, isso ainda é uma associação, não uma causa.
Eu sempre desejei que estes grandes e caros estudos questionassem até a cor das meias que o participante está usando. Eu aposto que eu poderia encontrar uma associação entre usar meias vermelhas um tipo de câncer se eu procurasse o suficiente. Será que o título seria meias vermelhas causam câncer?!

5) Risco relativo vs. risco absoluto
Os artigos com manchetes "cada porção de 50 gramas de carne processada comida diariamente aumenta o risco de câncer colorretal em 18%." Caramba. 18%! Jogue o toucinho fora (veja - não culpe o bacon pelo que o pão branco e ketchup fazem!). Isso, no entanto, é o jogo que todos estes boletins de imprensa de pesquisas de estudo observacionais/epidemiológicos jogam, e é um alarmismo infame.

Vamos olhar para o risco absoluto?
Organização de Pesquisas sobre o Câncer do Reino Unido tem ótimas estatísticas em todos os tipos de câncer. Eu apenas analisei o Reino Unido. Eles têm dados de outros países, se você quiser fazer sua própria busca minuciosa. A taxa de incidência para todas as pessoas no Reino Unido, padronizada por idade (você praticamente não verá o cancer do intestino antes dos 50 anos - procure os dados de idade), em 2011 foi de 47 por 100.000 pessoas.

47 por 100.000 pessoas.

Você precisa conhecer 2.128 pessoas, incluindo as pessoas mais velhas o suficiente, para conhecer uma pessoa que desenvolveu câncer de intestino no Reino Unido em 2011.

Agora - vamos fazer essa coisa de risco relativo vs. risco absoluto.
Partindo do princípio de que tudo o que a OMS fez tenha sido perfeito e que realmente havia uma diferença relativa de 18% entre os que comeram 50g de carne processada por dia e aqueles que não (e assumindo que nada mais estava impactando este estudo), o risco absoluto seria 51 pessoas por 100.000 vs. 43 pessoas por 100.000.
Agora, onde está o bacon e ovo antes da minha sessão de CrossFit ?! (P.S.: leia aqui sobre risco relativo versus absoluto)

O dano provável deste relatório:
O artigo do Lancet ao menos teve a decência de mencionar o valor nutricional da carne vermelha: “A carne vermelha contém proteínas de alto valor biológico e micronutrientes importantes como vitaminas do complexo B, ferro (ferro livre e ferro heme), e zinco". 

Isso ainda é um pouco de eufemismo. Tente ambas as gorduras essenciais; proteína completa; e as vitaminas e minerais necessários para a vida e saúde.

Quais serão as consequências deste relatório assustando as pessoas para que mantenham distância da carne real? São necessários aproximadamente 250g de bife do lombo para obter 10 mg por dia de zinco; mais de um quilo da mesma carne para satisfazer as necessidades diária de ferro - e na forma correta para o corpo. Que tal de mais de 20 ovos para ter a mesma ingestão de ferro? Ainda numa forma útil para o corpo. Ou 4,5 quilos de arroz integral para obter ferro na forma errada para o corpo?

O que eu levo deste informe? Há um monte de má ciência saindo da Organização Mundial de Saúde, uma organização que deveria ser referência, mas já demonstrou nem sempre saber o que diz.


Nada mudou da minha crença fundamental de que os seres humanos devem comer comida de verdade (especialmente carne de animais criados naturalmente alimentados com pasto, e carne preservada naturalmente). Evite alimentos processados, incluindo carne processada por empresas de alimentos falsificados. E tome cada estudo observacional que não considera estes cinco pontos acima com uma boa pitada de sal."

***

Reproduzo, a seguir, a íntegra da minha postagem na qual explico por que você não pode estabelecer causa e efeito com estudos observacionais.

Na postagem anterior, falamos sobre o que se considera como uma referência bibliográfica aceitável - algo publicado em periódicos peer reviewed.

No entanto, frequentemente eu critico, aqui no blog, estudos divulgados pela mídia. Mas - você perguntará - estes estudos não são estudos científicos peer reviewed? São, mas há uma hierarquia entre os TIPOS de estudos, o que faz com que uns apenas possam levantar hipóteses, enquanto outros possam fornecer respostas mais definitivas sobre um mesmo tema.

Recapitulando o que já escrevi uma vez:

A importância de saber diferenciar estes dois tipos de estudo é gigantesca. Afinal, os estudos epidemiológicos (observacionais) apenas podem levantar hipóteses. Eles não podem estabelecer causa e efeito. Repita comigo, em voz alta: "ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS NÃO PODEM ESTABELECER CAUSA E EFEITO". Eu não posso dizer que comer carnes processadas CAUSA câncer. Portanto eu também não posso dizer de reduzir o consumo de carne processada irá reduzir câncer. Por quê? Porque isso é oriundo de estudos observacionais/ epidemiológicos. Eu só posso dizer que há uma ASSOCIAÇÃO entre o consumo de carnes processadas e câncer.

Ok, mas no fundo, no fundo, não é a mesma coisa? Não é apenas uma questão de semântica (jogo de palavras)? Dizer que está associado ou que causa - tanto faz, significa que é ruim pra você, não é mesmo?? Não. NÃO. NÃO, NÃO É A MESMA COISA!!.

Vamos a um exemplo fora do mundo da saúde, que espero que deixe esse assunto BEM claro de uma vez por todas.

Em 2012, o portal IG publicou uma notícia referente às notas do ENEM. Um estudo que comparou os desempenhos dos estudantes de diferentes raças na prova. Trata-se de um estudo observacional, epidemiológico. Não era um experimento. Apenas estava-se OBSERVANDO quem tirou qual nota, e quem tinha qual cor de pele. Vamos à manchete:

Notas de alunos brancos no Enem são mais altas que dos negros

Dados do exame de 2010 nas capitais do País também confirmam distância entre as médias de estudantes de colégios particulares e de escolas públicas

Agência Estado 
Recorte inédito de dados de desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2010 nas capitais do País, além de confirmar a distância entre as notas médias dos estudantes de colégios particulares e os de escolas públicas, revela o abismo que separa estudantes brancos e negros das duas redes. 

Os números mostram que as notas tiradas pelos alunos brancos de escolas particulares no exame são, em média, 21% superiores às dos negros da rede pública – acima da diferença de 17% entre as notas gerais, independentemente da cor da pele, dos estudantes da rede privada e os da rede pública.
Então, está bem claro que há uma ASSOCIAÇÃO entre raça negra e mau desempenho do ENEM. E aí,você ainda acha que associação é o mesmo que causa e efeito??? Porque, se você acha que é a mesma coisa, você teria que acreditar que ser negro é a CAUSA do mau desempenho, não é mesmo? Que o problema original, essencial, único, etiológico é a raça. Bom, no século 21, suponho e espero que ninguém pense isso. A própria matéria jornalística  deixa claro que a associação ocorre devido a outras variáveis ocultas:

Na questão econômica, segundo ela, a explicação é que "entre os pobres, os negros são os mais pobres". O lado pedagógico refletiria a baixa expectativa. "Em uma sala de aula, se uma criança negra começa a apresentar dificuldade, a professora desiste de ensiná-la muito mais rapidamente do que desistiria de um estudante branco."

Então, como podemos ver, associação é apenas isso - associação. Associação não implica necessariamente causa e efeito - erros gigantescos podem advir dessa confusão. As reais causas, no caso da discrepância racial, podem ser especuladas a partir de outros raciocínios interpretativos da realidade. Mas, volto a dizer, as CAUSAS não estão demonstradas no estudo, e por que não? Porque ele é um estudo observacional - ele apenas identifica que duas coisas acontecem ao mesmo tempo ou se agrupam com mais frequência - não há como dizer que uma CAUSA a outra.

Ok, agora eu vou usar a criatividade e reescrever a notícia acima, como se fosse uma notícia do caderno de saúde do jornal.

Mortalidade de quem come carne branca é menor do que a de quem come carne vermelha

Dados de um levantamento de 2010 nas capitais do País também confirmam distância entre vegetarianos e consumidores de carne

Agência Souto
Recorte inédito de dados de mortalidade do Ministério da Saúde de 2010 nas capitais do País, além de confirmar a distância entre a saúde dos vegetarianos em relação aos onívoros, revela o abismo que separa os consumidores de carne branca e os de carne vermelha. 
Os números mostram que a mortalidade das pessoas que consumiam apenas carne vermelha é, em média, 21% superior à dos que consomem apenas carne branca– acima da diferença de 17% de mortalidade, independentemente do tipo de carne, entre vegetarianos e pessoas de dieta onívora.
E então, a carne vermelha AUMENTA a mortalidade? Reduzir o consumo de carne vermelha salvará vidas (humanas)? Se você disser que sim, você é um racista da pior espécie. Percebe?? É a mesma coisa! Não há como estabelecer causa e efeito em um estudo observacional. É um erro. Se você afirmar, com base neste texto de ficção, que carne vermelha aumenta a mortalidade, por uma questão de coerência você se verá obrigado a afirmar que o fato de uma criança ter nascido negra, a sua "raça", a predestina e condena a ter mau desempenho no ENEM.

Ok, você poderia dizer, no caso do ENEM é óbvio que as causas são outras, mas no caso da carne, qual a explicação? Não é óbvio que, nesse caso, a carne é que faz mal mesmo?

Não.

Deixe eu ajudar. Quando estudos epidemiológicos/observacionais implicam carne vermelha na gênese de doenças, normalmente eles comparam, dentro de um universo de milhares de pessoas que respondem a questionários, os 20% que comem menos carne vermelha versus os 20% que comem mais. Chama-se isso de "quintil", ou seja, o "um quinto" do grupo que come mais disso, ou menos daquilo. Será que esses grupos ("quintis") são diferentes em OUTRAS COISAS, além do tipo de carne que comem? Será que, no ENEM, a cor da pele se acompanha de OUTRAS diferenças sociais (renda, oportunidade...)? Abaixo, duas fotos, representativas do quintil que come MAIS carne vermelha, e do que come MENOS:

Ele come muita carne vermelha dentro de seus hamburgers, junto com coca e batatinha - este é um representante TÍPICO do quintil que come mais carne vermelha nos estudos.
Representante típica do quintil que come menos carne vermelha: elas têm maior nível educacional, maior renda, fumam menos, se exercitam, fazem Yôga e meditação, e queimam incenso.

Então, se eu comparar o quintil de pessoas que mais comem carne vermelha, representado pela foto mais de cima, com o quintil que menos come carne vermelha, representado pela foto de baixo, qual dos quintis você imagina que terá melhores desfechos de saúde? Qual você imagina que terá menor mortalidade por todas as causas? Olhando essas fotos, alguém consegue imaginar outros fatores, outras variáveis ocultas, que possam explicar esses desfechos?? E se a carne vermelha for como o sorvete no exemplo do tubarão, apenas um MARCADOR que identifica um PERFIL de comportamento de risco?

Também já escrevi sobre isso, e reproduzo abaixo:


Conhecido como European Prospective Investigation in Cancer and Nutrition (EPIC) (Estudo Europeu Prospectivo sobre Câncer e Nutrição), ele incluiu mais 500.000 pessoas de 10 países diferentes que foram questionados sobre um conjunto de diferentes fatores dietéticos, desde o que e o quanto comiam até seu nível de escolaridade, idade, peso, altura, e tabagismo. O estudo indicou que pessoas que comiam muita carne processada também tinham uma chance muito maior de fumar, comer menos frutas e saladas, e ter níveis mais baixos de educação. Eram muito mais gordos e se exercitavam muito menos do que o restante da amostra. E os homens que comiam mais carne processada bebiam muito. Ah, e os maiores comedores de carne eram também mais velhos - muitos já haviam passado dos 70 anos quando sofreram as consequências das salsichas.


as pessoas que comiam a maior quantidade de carne processada - que o estudo qualificou como mais de 160g por dia (equivalente a cerca de 6 salsichas) - não morreram apenas de de doenças cardiovasculares ou câncer, as coisas que costumamos associar à uma dieta ruim; eles também morreram mais de "outras causas", uma categoria que inclui acidentes de carro, ferimentos acidentais e outras causas não relacionadas à comida. Os maiores consumidores de carne branca, por outro lado, eram os "escoteiros" do grupo: não fumavam muito, comiam bastante salada, faziam exercício, iam à faculdade, e com certeza escovavam os dentes, usavam cinto de segurança e faziam seus check-ups regularmente.


Posso repetir meu trecho favorito? "As pessoas que comiam a maior quantidade de carne processada (...) não morreram apenas de doenças cardiovasculares ou câncer, (...) eles também morreram mais de "outras causas", uma categoria que inclui acidentes de carro, ferimentos acidentais e outras causas não relacionadas à comida. "

Em um mundo onde 100% das pessoas consideram carne vermelha algo letal, quem ousa comer muita carne vermelha? Gente tão desleixada com sua saúde, que não usa cinto de segurança e deixa armas carregadas ao alcance das crianças - é isso que está implícito no texto.

IMPORTANTE: isso irá se refletir no estudo epidemiológico, independentemente de a carne ser boa ou má para a saúde!! O que importa, neste caso, é a CRENÇA de que faz mal. Se todo mundo achar que faz mal, só os irresponsáveis comerão em maior quantidade. E como os irresponsáveis são irresponsáveis em outras áreas da vida, eles inevitavelmente morrerão e adoecerão mais. É a profecia autorealizada: basta uma crença ou preconceito existir, para ser detectada nesse tipo de estudo. E, em uma lógica circular, se todo mundo acredita em algo, o estudo mostrando a associação apenas reforçará a CRENÇA em uma relação CAUSAL.

Mas, de que forma comer salsichas poderia CAUSAR acidentes de automóvel?

Então, ficou claro? Bem claro? Dá para entender, bem entendido, que as reais CAUSAS por detrás das associações podem ser outras coisas?

Por favor, repita novamente: "ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS NÃO PODEM ESTABELECER CAUSA E EFEITO"

***XXXX***

Façamos agora um experimento mental. Vamos imaginar que vivemos na África do Sul durante o regime do Apartheid. Neste regime de opressão racial, a wikipedia nos diz que "o apartheid tem, como centro de suas crenças, que: (I) outras raças diferentes da branca são inferiores; (II) que um tratamento inferior a raças "inferiores" é apropriado; (III) e que tal tratamento deveria ser reforçado pela lei."

Ok? Vamos em frente.

Digamos que, neste contexto, surgisse a notícia do portal IG, aquela que mostrava que os negros têm um desempenho pior no ENEM. Qual você acha que seria a interpretação dada ao estudo? Obviamente seria considerado como um resultado natural e esperado, causado pela reconhecida inferioridade racial e biológica dessa parcela da população.

Mas, alguns poucos excêntricos diriam, é um estudo observacional, não pode estabelecer causa e efeito! Mas, responderiam todos, todo mundo, no fundo, SABE que a CAUSA é a inferioridade. Isso de "causa e efeito versus associação" é só um jogo de palavras, e todos os estudos observacionais mostram a mesma inferioridade.

***XXXX***

Já deve estar evidente, para quem leu até aqui, a conclusão desse argumento. Mas o óbvio deve ser dito:

Estudos observacionais e epidemiológicos capturam os vieses, o zeitgeist, os preconceitos de uma época, e o reproduzem. Mais do que isso, embora não possam estabelecer causa e efeito, acabam sendo interpretados de forma a reforçar a causa presumida daquilo que estudam, sob a ótica dos preconceitos e diretrizes vigentes.

***XXXX*** 

Todos os dias eu recebo emails com notícias sobre estudos observacionais mostrando associaçõesentre os suspeitos usuais (carne vermelha, gordura saturada, proteína animal, sal) e todo o tipo de desfecho ruim, exatamente como se esperaria sob a ótica dos preconceitos e diretrizes vigentes. Muitas dessas associações já foram refutadas completamente por ensaios clínicos randomizados - o tipo de estudo que pode efetivamente estabelecer relações de causa e efeito. Então, de agora em diante, quando eu responder "mas isso é um estudo EPIDEMIOLÓGICO!", fica desde já claro a importância que se lhes atribuo: servem apenas para levantar hipóteses - e deixam de ser úteis depois que um ensaio clínico já examinou o mesmo assunto, com resultados diferentes.

Longe de mim sugerir que estudos epidemiológicos são inúteis. Há situações em que um experimento, um ensaio clínico randomizado, não é viável do ponto de vista ético. Exemplo clássico é a relação entre cigarro e câncer de pulmão. Não há como randomizar pessoas para grupo de fumo compulsório versus um grupo controle, para depois de alguns anos avaliar quantos morrerão em cada grupo. No caso do câncer de pulmão, o que permitiu a descoberta da associação foram estudos epidemiológicos - o experimento jamais será feito. Bem verdade que a magnitude da associação, juntamente com os demais critérios de Bradford Hill (veja aqui), permitem, nesse caso, uma ilação causal: os fumantes têm CEM vezes mais chance de desenvolver câncer de pulmão.

***XXXX***

A esmagadora maioria das manchetes da imprensa sobre saúde são baseadas em estudos epidemiológicos, e são escritas por jornalistas que não sabem o que você acabou de ler aqui. Em virtude disso, estão cheias de sugestões de causalidade onde deveria haver apenas afirmações claras de que trata-se apenas de associações.

E, eu não sei se já disse isso... mas ASSOCIAÇÃO NÃO IMPLICA NECESSARIAMENTE CAUSA E EFEITO!





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