É mais barato, gentil e transparente comer em Paris
Comida Saudável

É mais barato, gentil e transparente comer em Paris



Cobertor de gentileza, para a friagem do terraço
Numa situação hipotética você contrata uma faxineira por 150 reais por dia. Ela chega com um buquê de flores, você dá as orientações do que quer e volta no fim do dia para fazer o pagamento. Neste momento fica sabendo que sua conta pulou para 250 reais porque ela está cobrando 25 de cada vasinho com flor que deixou logo pela manhã, à sua revelia, em cada quarto. Você reclama e ela retruca que se não quisesse teria que ter avisado logo que ela chegou.
Você também pode chegar a uma loja para comprar camisetas e logo à entrada um vendedor te enfia na cabeça um boné, ao que você agradece. No final, o boné vem na conta. O taxista poderia desviar do seu caminho para lhe mostrar um ponto turístico que acha imperdível e você ter que pagar por estre braço de corrida. E por aí vai.
Nada disto aceitaríamos sem esbravejar. No entanto, você chega a um restaurante e, antes que arrume lugar para sua bolsa, antes que abra o cardápio ou enquanto vai lavar as mãos, sua mesa já está devidamente abastecida de couvert - às vezes umas conservinhas fermentadas no mau sentido, uns pães sem graça e bolinhas de manteiga. Ou tanta coisa que valeria por uma refeição. Você gostaria de acreditar que é apenas uma cortesia, não sabe o preço daquilo, se sente constrangido de perguntar ou mandar tirar e depois leva um susto quando fica sabendo o valor do assalto. Se estiver com a família, então, é o leite do mês. Já paguei por aqui R$ 27,00 por pessoa, talvez já tenham chegado aos 30! Nestas horas você percebe que se tivesse convidado aqueles quatro amigos para comer em sua casa poderia ter feito uma farta e animada refeição com carne e vinho pelo valor da soma dos couverts.
Aí você pede uma água porque o preço do vinho em restaurantes está pela hora da morte, e você nem gosta tanto assim de água com as refeições - é só para a mesa não ficar vazia. Vai conversando e bebericando a sua água que nunca acaba. Quando chega a conta, descobre que vai ter que pagar 21 reais pelas três águas que consumiu - um serviçal fantasma, e ele é treinado para se comportar assim, abasteceu sua taça a cada gole sem que você percebesse e te enfiou duas outras garrafas goela abaixo sem que você as pedisse. E você nem gosta de água tanto assim... Bem, você pede uma entrada e diz que vai ficar só com a entrada. Não, não pode, a entrada só tem aquele preço se estiver casada com algum prato principal. Se não, o preço é outro. Então pede um prato para dividir. Não, não pode. Na hora de ir embora, um cafezinho. E chega o cafezinho com docinhos, biscoitinhos, frescurinhas e engordativinhos não pedidos. Mas você já comeu sobremesa, só queria um cafezinho. Não pode. Você não pode nada, eles cobram por tudo. Aí vem a conta com tudo o que possível de ser cobrado e, claro, a taxa de serviço que não é tão opcional assim.
Depois do susto, vem também a decisão envergonhada de nunca, jamais, em hipótese alguma, contar àquela sua faxineira careira quanto você é capaz de gastar numa só refeição. E nada do que você comeu ali era realmente imperdível. Isto é um pouco de São Paulo, com felizes exceções.
Tive a sorte de conhecer Paris neste momento em que os nativos estão percebendo que o principal produto capaz de manter a cidade viva ainda é o turismo e quando a mistura de culturas é tão grande que parece obrigar os franceses a mostrar o que eles têm de melhor para se sobressairem entre uma multidão que os dilui entre árabes, chineses e africanos.
Entristece saber que ainda copiamos costumes franceses que já não fazem mais parte daquela cultura ou que algum dia estiveram restritos a uma pequena corte e seus seguidores, incluindo a arte de esbanjar, a cultura do servilismo e a arrogância de colonizador. Não vi isto por lá. É claro, não falo dos ricos franceses, mas de gente comum, classe média, que trabalha para pagar o que compra, que tem acesso à cultura e que eventualmente come em restaurantes. Esta gente parece querer sempre saber quanto vai gastar, tintim por tintim.
Prova disto é que a maioria dos restaurantes que vi pelos bairros por onde circulei trazia os preços dos pratos na porta, numa lousa charmosa. E isto queria dizer o seguinte: se você escolher comer um cordeiro e uma taça de vinho, é só somar as duas coisas e já entra sabendo exatamente quanto vai gastar. Assim como o pão, a água em jarra é sempre cortesia,
a menos que prefira água mineral em garrafinhas plásticas condenáveis.
Não é nenhuma novidade falar dos preços altos dos restaurantes em São Paulo (e talvez no Rio e outras capitais). Carlos Dória já destrinchou o assunto em profundidade analisando fatos e custos. Luiz Américo e Luiz Horta também vivem falando disto. Então você viaja e confirma o que eles dizem - é mais barato comer em Paris que em São Paulo. Se a comida é apenas um item que compõe o preço final do prato, onde é que a coisa pega? Por que os restaurantes daqui te assaltam nos itens dispensáveis para você? Ah, vai ver que aluguel em São Paulo é mais caro que em Paris ... Ou será que poderíamos gastar menos se pudéssemos encher a própria taça enquanto temos braços, ou se tivéssemos a escolha de pagar apenas pelo que queremos consumir sem aguentar cara feia? Mais que a diferença de preço entre pratos de qualidade similar é o que te cobram aqui por itens como o tal couvert, a água, o café, o vinho ou por uma água quente com folhas de hortelã - quando não, sachê.
Eu, sinceramente, não vou muito a restaurantes porque acho caro. E, como sugere o amigo Luiz Horta, melhor ir juntando o dinheiro pra ir comer em Paris. Nos dois anos em que fui jurada do Prêmio Paladar pude ter uma boa mostra do que acontece. Falta gentileza e transparência e sobra ganância. A relação comercial é tão descarada que não lhe dá a escolha de relevar os pequenos defeitos de um restaurante. Uma coisa é certa, quando você paga caro inclusive pelo que não escolheu consumir, uma cenoura cozida um segundo além do ponto que você julga correto será motivo para não mais voltar. Vira birra. Retirar algo de sua mesa (o couvert não pedido, por exemplo) é tão simbólico quanto o ato de ofertar uma jarra de água e uma cesta de pão e o significado de cada coisa tem um entendimento universal.

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Só para ficar em dois exemplos: por recomendação do Luiz Horta, fui ao Le Camptoir du Relais, do chef Yves Camderborde, que já estava na minha lista - fiz uma aula com ele, quando esteve no Brasil, e publiquei aqui no Come-se umas receitas. Pedi aquilo que achei mais curioso - pé de porco desossado e empanado. E fui feliz! Marcos preferiu um clássico carrê de ovelha e também acertou. Tomamos vinho, comemos um creme caramelo de verbena anunciado pela garçonete, que não estava no cardápio, e terminamos com café, um simples café expresso com um biscoito. Jarra de água fresca e pão artesanal são gentilezas. A conta, 70 euros! E esta foi nossa única extravagância na viagem, baratíssimo perto de algo similar por aqui. Não preciso dizer que a comida era impecável, deliciosa, linda, cheirosa. E se o pimentão do carrê estava um pouco salgado e ácido demais, quem liga? Todo o resto era tão bom e gentil.


Como estávamos hospedados entre Bastille e Marais, fomos a pé almoçar no último dia, por recomendação do amigo Pedro Henrique, num bistrô de comida provençal, Chez Janou. Passava um pouco do meio dia e encontramos a casa com algumas mesas vazias. Logo a casa lotou. O garçon que nos atendeu, moço louro, alto, bonito e atencioso, corria de uma mesa a outra sem descanso. Ainda assim, foi paciente com nossas escolhas, sabia sorrir. Pedimos uma "formule", combinado presente em quase todos os restaurantes, no almoço, que consiste de entrada + prato principal + sobremesa ou dois desses pratos. Algo como nosso executivo. Custa geralmente entre 10 a 13 euros. Neste caso, 13 euros, com dois pratos. Pedimos para dividir o combinado e fomos atendidos com gentileza, de modo que Marcos comeu o peixe e eu, uma sedosa sopa de castanhas, acompanhados de vinho. Jarra de água e pão, por conta da casa. A recomendação do Pedro era principalmente para que comêssemos musse de chocolate de sobremesa. Disse que teríamos uma surpresa. Nem sou muito de doce, mas Marcos é e pedimos. O garçon arrumou uma pratinho e duas colheres, mesmo eu não tendo pedido, e trouxe a sobremesa. A surpresa? uma tigela enorme da qual poderíamos nos servir à vontade de uma musse de chocolate divina. Marcos levou um susto. Só depois de um tempo o garçom vem retirar a tigela. Se fosse aqui, já sei: - Não, esta musse só é servida se todos da mesa pedirem. Mensagem subliminar do restaurante: um só pede e todos comem, nós saímos no preju. Bobagem. Saímos com a casa lotada, fila na porta, poucos turistas e muita gente que parece trabalhar nas redondezas. Ah, a conta? 26 euros para dois satisfeitíssimos! Há outros bons exemplos, mas estes ilustram bem.
Só para terminar, uma constatação curiosa: amigos que vivem há muitos anos em Paris e trabalham com franceses classe média dizem que eles acham que brasileiros que viajam por lá são todos muito ricos porque acham barato estes restaurantes que eles ainda acham caríssimos. Alguma coisa está errada, tá ou não tá?
Até o Soupe Populaire é charmoso! Não, não fui pegar a senha. Mas o cuscuz de graça das quartas-feiras quase fui comer - em outro lugar. Fica pra próxima.




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