Extra, extra! Corram às bancas e comprem o Estadão. O caderno Paladar traz uma cobertura completa do Laboratório de comida brasileira que aconteceu neste último final de semana e do qual participei. Só agora, junto com todo mundo, é que pude ver detalhadamente o que aconteceu enquanto eu mesma estava com a barriga fria comandando o fogão. Se quiser, dê uma espiada no portal, onde também poderá conferir algumas coisas. Imagino o trabalhão da equipe pra conseguir fazer caber tudo aquilo num só caderno. São ingredientes, receitas (até da pamonha), chefs renomados, fotos de produtos e muitos sabores esquecidos. Que não deveriam ser, afinal são nossos sabores ou pelo menos já bem assimilados há séculos. O bilimbi (é assim que aparece nos dicionários, mas também pode ser biri-biri, biribiri, caramboleira-amarela ou limão-de-caiena, a Averrhoa bilimbi), por exemplo, valorizado na cozinha do Beto Pimentel, apesar de ser muito usado como conserva em algumas regiões de Minas e Nordeste, já foi muito mais aproveitado na cozinha como limão de temperar antes de os cítricos se espalharem pelo país todo, daí limão-de-caiena. Não é um limão, diga-se. É da família das carambolas. Aliás, as três frutas vieram da Ásia. Na Ilha do Marajó, na casa da dona Jerônima, fiz um ceviche de turu usando bilimbi e limão e ficou muito bom. Se não me engano, na entrada do prédio da Bienal, no Ibirapuera, tem um bilimbizeiro.
Mas, voltando ao Laboratório e fazendo um paralelo com o mundo da moda, me lembrei do que disse ontem o estilista Kenzo Takada, que veio para o São Paulo Fashion Week: acha uma pena que hoje a moda seja igual em todo lugar do mundo. Com a comida, dá-se o mesmo. Quer coisa mais entediante que tomar o mesmo café da manhã em qualquer hotel em que você vá? E a palavra ?regional? quando é usada, sempre vem sempre carregada com uma pitada pejorativa demonstrando que aquilo é diferente e pitoresco, quando deveria ser o contrário - sinônimo de raiz, origem, iguaria, do que é nosso conhecido e não exótico. Mas é isto. Quem sabe o Laboratório tenha servido para dar uma lubrificada no botãozinho emperrado do orgulho por nossos quiabos, taiobas, pamonhas, moquecas, mangaritos, farinhas, camarões secos, carne de bode ou turus. E com tudo isto bem resolvido, por que não incorporar as novidades facilitadas pela globalização?
Depois da aula "radiografia da mandioca", cheguei à conclusão de que há muito ainda a aprender sobre nossa rainha. Por isto e aproveitando a exposição que fizemos durante a aula, aproveitei para pulverizar um pouco mais os derivados da mandioca que mostramos. Só pra me safar, saibam que a confusão de nomes é geral. Temos uma legislação brasileira que tenta padronizar nomes e definir qualidades, mas as farinhas artesanais ganham nomes e formas de preparo diversos dependendo da região e da criatividade. O importante é reconhecer estes produtos e valorizar estas diferenças. Nem tudo é farinha do mesmo saco.
Puba ou massa de mandioca ? mandioca deixada em água corrente ou em tanques para pubar (amolecer) por cerca de 5 dias. Quando está mole, é triturada só ou com uma parte de mandioca fresca, lavada, prensada para tirar parte da goma e peneirada para reter as fibras e resíduos duros da mandioca (crueira). A massa fina obtida é vendida fresca para fazer mingau, cuscuz com coco ou bolo. Pode também ser seca e vendida como ?farinha de carimã?. Depois de pubada, a mandioca da variedade branca ou da amarela pode ser triturada integralmente (com crueira) para se transformar em farinha d´água em suas muitas versões, com coco inclusive. Esta massa da foto veio de Recife e foi comprada no Mercado Municipal da Lapa.
Farinha d´água de Bragança - PA, considerada a melhor farinha do Pará. Esta da foto, na versão com coco, do Seu Bené
Farinha d´agua ? Típica da região Norte, é feita com a mandioca puba triturada. Pode ser feita com mandiocas brancas ou amarelas - esta, mais comum. É usada para fazer pirões ou para acompanhar pratos com molho: moquecas, pato no tucupi, peixadas e cozidos. Ou na forma de misturas molhadas como chibé ou jacuba (basicamente mistura de água e farinha, que pode ser temperada com açúcar ou mel). Vai bem ainda no pirão ou numa sopa feita com carne e caldo. É usada como farinha de mesa na região Norte. Mas tem que engolir direto sem mastigar ou deixar na boca algum tempo para umedecer.
Farinha d´agua de Bragança ? PA ? feita com mandioca amarela pubada, torrada com ou sem coco e embalada em paneiro de arumã. Boa como farinha para comer de merenda, para fazer pirão ou acompanhar pratos molhados. Fiz um pão de castanha usando um pouco dela e deu muito certo.
Esta eu comprei no Mercado Municipal de Manaus
Farinha d´agua de Uarini, tipo Ovinha ? típica do Amazonas, feita no distrito de Uarini (a 3 dias de Manaus ou 2 horas de barco, de Tefé). Também conhecida simplesmente como farinha de Uarini. É um produto raro, o caviar das farinhas, custa caro (cerca de R$ 5,00 o quilo) se comparada às outras porque seu feitio é trabalhoso. É feita com a mandioca amarela pubada por 3 dias. Depois de espremida no tipiti (prensa de palha), passa por peneira para tirar a crueira (o resíduo duro) e então vai para a masseira para ser rolada com a mão até formar bolinhas e tamanhos variados. Há uma opção mais "moderna" que é passar a massa por uma engenhoca artesanal chamada de emboladeira ? duas placas de madeira ou metal rolam uma sobre a outra com ma massa entre elas, formando bolinhas. Depois de secas em tacho, são peneiradas para separar por tamanho: ova ou ovinhas. A coisa mais deliciosa que já provei nos últimos tempos. A receita do cuscuz que apresentei no Laboratório Paladar e outras mais estão aqui. Uma moradora de Uarini, Domingas Bezerra, me contou que com ela se faz delicioso mingau doce com leite de castanha. Nham nham ... a experimentar.
A goma fresca se apresenta assim, em torrões Goma ? geralmente quem faz farinha, não extraí polvilho e vice-versa. Mas há quem faça as duas coisas e neste caso, o produto resultante depois da extração do amido é uma farinha rica em fibras, mas pobre em amido. Dependendo do lugar, pode ser chamada de farinha seca (que em outros lugares é a nossa farinha comum, sem pubar) ou farinha de raspa. Para extrair a fécula (amido da mandioca, polvilho ou goma), a mandioca é ralada, lavada e prensada. O líquido obtido é deixado em repouso por cerca de 4 horas para o amido decantar. A água é jogada fora, restando no fundo o sedimento úmido. É a goma fresca. Desmanchado e deixado a secar este sedimento transforma-se em fécula seca, um talco fino que recebe o nome comercial de polvilho doce. Se a água é deixada com a goma sedimentada para fermentar por cerca de 10 dias, o polvilho resultante estará ácido. É o polvilho azedo. Tenho um post onde faço um passo-a-passo artesanal deste processo. Se quiser, veja aqui.
Goma fresca - pode ser peneirada para fazer beijus crocantes ou tapiocas (as panquequinhas brancas e úmidas). Um ou outro dependendo da espessura ou do calor empregado. No Mercado da Lapa há também "goma seca do Norte" que nada mais é que o polvilho para nós paulistas, só que um pouco mais encaroçado.
Polvilho doce ? é a goma desidratada até virar um talco bem fino. Quando hidratado e aquecido, dá bastante liga, portanto, é bom também para fazer beijus e tapiocas. Com líquido e aquecido, forma um mingau cremoso e transparente, com bastante liga. Pode ser usado para fazer pãezinhos, bolos, brevidades.
Polvilho azedo ? como já disse acima, a água com o sumo da mandioca é deixada com a goma sedimentada para fermentar por cerca de 10 dias ou mais. O polvilho tirado daí estará bem ácido e confere sabor ácido agradável aos preparos, além de permitir maior expansão: pães de queijo e biscoitos de polvilho crocante, por exemplo. O mingau feito com ele é mais escuro, transparente, cremoso e macio (tem proporção maior de
amilopectina, responsável pela maciez e transparência
, em relação à
amilose, cujo teor diminui com a acidez).
Sagu ? é feito com a goma (polvilho, fécula) da mandioca, mas originalmente era feito com o amido de uma palmeira (sagueiro). Em outros países pode ser feito com o amido mais abundante no local, como de batata-doce, por exemplo. Na indústria, o amido é coagulado e boleado para bolar esferinhas de tamanho padronizado. Artesanalmente a massa era boleada com as mãos sobre pano estendido e depois seca.
Farinha de tapioca ? típica do Pará, são grânulos de amido coagulados na forma de sagus, e estourados em chapa quente como pipocas. A extrusão dá aos grânulos aspecto de isopor. Usada em pãezinhos, mingaus, cobrindo sobremesas ou como acompanhamento de polpa de açaí ou bacaba salgada ou doce.
Tapioca granulada ? feita com o amido molhado que é coagulado em grânulos sobre chapa quente. É separada por peneira em grãos finos ou grossos. Tem aparência de sal grosso, meio translúcida e pode ser usada em cuscuz (umedecida com leite de coco doce), bolos ou mingaus.
Farinha de mandioca comum ou seca ? ou ainda farinha de mesa. Aquela que conhecemos como farinha comum e que vai à mesa para acompanhar pratos de carne ou peixe. É nosso pão brasileiro para acompanhar comidas de todo tipo, principalmente entre nordestinos. Pode ser usada para fazer farofas ? crocantes, com manteiga, ou de água. Pela legislação brasileira, a farinha comercializada tem que ter no mínimo 75% de amido (a goma). Alguns tipos artesanais, no entanto, são mais polvilhadas, como as do Sul, finíssimas quase como trigo. No processo normal a mandioca é descascada, ralada, prensada e seca em grandes tachos. Se a polpa for lavada com água antes de ir à prensa para extrair o polvilho, que é levado com a água, a farinha sairá mais fibrosa (rica em fibras insolúveis, o que não é nada mal pra quem quer ter regularidade intestinal), conhecida no Norte, esta sim, como farinha seca, considerada de categoria inferior. É boa para sopa, como a que a Mara Salles fez na aula coletiva, pois não a deixa muito viscosa.
Farinha amarela do Pará ? igual à de cima, só que feita com farinha amarela. Boa como farinha de mesa e para farofas. Com banana-da-terra e caranguejo, por exemplo. Algumas casas de farinha adicionam corante amarelo-tartrazina, que é proibido. Na casa de farinha onde fui, em Nazaré - BA, havia um saquinho com pó amarelo. Cheirei, experimentei e constatei ique era cúrcuma. Ele confessou que às vezes usa, mas que também tem colegas que usam corante artificial mesmo. Agora, quando a gente compra no comércio, vai saber... Segundo um trabalho que li recentemente e avaliou entre outros itens a adição de corantes, a maioria das amostras testadas estavam dentro das conformidades.
Farinha bijusada quebradinha ? típica da Bahia. Minha amiga Silvia Lopes sempre me traz de Salvador quando vem de lá. É feita com goma molhada seca peneirada numa camada fina sobre chapa quente formando pequenos beijus disformes e crocantes. Na Bahia ela pode ser consumida no café (isto mesmo, dentro do café) ou no leite, com rapadura. É bom tambem pra deixar do lado do computador e ir beliscando na hora da fome. Com coco ralado e açúcar, levada ao forno, faz um tipo de granola para ser comida pura ou acompanhando frutas. Aliás, muito melhor que qualquer granola.
Outros posts aqui do Come-se sobre farinhas e ingredientes do Paladar Brasileiro:
Farinha d´água - sobre a farinha do Seu Bené, de Bragança-PA, e receita de pão feito com ela
Farinha de copioba - visita à casa de farinha de copioba em Nazaré das Farinhas-BA
Da mandioca até a tapioca - todos os processos até chegar ao polvilho, usando liquidificador
Farinha de Jacupiranga - uma delícia aqui perto de nós
A mandioca, o tacho e o tipiti Ainda falando do Revelando São Paulo, o evento que esteve no Parque da Água Branca, dei uma última rodada pelo rancho do tropeiro no sábado e passei os olhos meio com descaso no tacho e na farinha fina e branca de Jacupiranga...
Nunca pensei que esta tapioca fizesse tanto sucesso no instagram. Acho que foi a mais curtida de todas fotos que já publiquei. Muita gente querendo saber como faz. Então, aqui vai a explicação: A massa de tapioca é a que sempre faço. Pode usar água...
Feira de São Joaquim Há alguns meses estive em Salvador e minha amiga Silvia Lopes fez questão de me levar para conhecer a cidade de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo, onde finalmente descobriríamos o que é a tal farinha de copioba, que todo...
Há muitas maneiras de se cozinhar sem trigo. Quem tem doença celíaca costuma saber disso. Há várias farinhas substitutas no mercado, com preços nem sempre muito atraentes. Mas nesta quinta quero dedicar o espaço para mostrar aos leitores do Come-se...
Já publiquei como fazer beiju de tapioca no post "da mandioca ao polvilho e à tapioca", onde mostro desde a extração caseira do amido da mandioca até o feitio da tapioca na frigideira. Mas resolvi fazer o vídeo com a amiga Inês Correa depois de...