Uma visão alternativa das gorduras saturadas e laticínios: de inimigas a amigas
Comida Saudável

Uma visão alternativa das gorduras saturadas e laticínios: de inimigas a amigas


Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui (publicado no Jornal Americano de Nutrição Clínica :-)

por Arne Astrup

Quase todas as diretrizes dietárias internacionais recomendam uma redução nas gorduras saturadas (SFA) como intervenção-chave para reduzir a incidência e mortalidade por doença cardiovascular (CVD). Isso foi traduzido em aconselhamentos para reduzir a ingestão das maiores fontes de SFA - ou seja, laticínios, carnes e ovos. Entretanto, meta-análises recentes tanto de estudos observacionais quanto de testes randomizados controlados não apenas levantaram dúvidas sobre a substanciação científica para tal aconselhamento, mas na prática minaram tais hipóteses. Tornou-se claro que existe uma necessidade para uma abordagem completamente diferente, com aconselhamento que seja baseado em alimentos ao invés de em nutrientes.

A evidência que suporta a redução da SFA repousa em um argumento de 2 passos:

"Um corpo de evidências sólido indica que ingestão mais alta da maioria das SFAs (A) está associada com níveis mais altos de colesterol total e colesterol LDL (B). Níveis mais altos de colesterol total e de LDL (B) são fatores de risco para CVD (C)" [1]

A maioria interpretaria a afirmação acima como evidência de relação causal entre a ingestão de SFA (A) e a CVD (C), mas isso na prática é uma premissa de que concentrações aumentadas de LDL (B) sempre vão aumentar o risco de CVD (C). A relação entre gorduras dietárias (e outros componentes dietários) e CVD é, entretanto, muito mais complexa, e tal premissa não leva em consideração a importância do tamanho das partículas de LDL, os efeitos do HDL e outros mediatores dos processos ateroscleróticos, trombóticos e trombolíticos. [2].

SFA e CVD


Mais meta-análises recentes que compararam ingestões altas e baixas de SFA falharam em encontrar qualquer aumento de risco para CVD. Siri-Tarino et al. [3] compararam quantis extremos de ingestão de SFA e não encontraram risco relativo diferente de 1.0. Entretanto, tornou-se óbvio que os diferentes ácidos graxos derivados de diferentes alimentos não tem os mesmos efeitos biológicos, e que a matriz alimentar dentro da qual são entregues modifica seu efeito. Então os efeitos de saúde de qualquer matriz alimentar rica em SFA não podem ser previstos somente com base no "conteúdo total de gordura saturada" dado pelo rótulo. Há uma necessidade de se ver o efeito de saúde das "comidas integrais" (N.T.: o sentido de "integral" aqui refere-se a comidas pouco ou nada processadas) e de usar biomarcadores para melhorar a validade da ingestão habitual de alimentos em estudos observacionais e a aderência em estudos randomizados controlados (RCTs).

Chowdhury et al. [4]  examinaram o efeito de SFAs baseados em uma meta-análise de 17 estudos observacionais com biomarcadores de ácidos graxos e 27 RCTs de suplementação de ácidos graxos. Nos estudos observacionais, o risco relativo para doença coronariana não foi diferente para SFAs, PUFAs o-6 (gorduras poliinsaturadas ômega-6) e MUFAs (gorduras monoinsaturadas) quando os terços superior e inferior do consumo e do volume em circulação destes ácidos graxos foram comparados. A meta-análise de RCTs dados de CVD chegou à mesma conclusão. Outra meta-análise de RCTs até mesmo sugere que substituir SFAs por PUFAs o-6 pode aumentar o risco e mortalidade por CVD [5].

Laticínios e risco de CVD e diabetes tipo 2


Em anos recentes, um corpo de pesquisa substancial tem investigado os efeitos dos laticínios e suas gorduras sobre o risco de CVD, diabetes tipo 2 e obesidade. Uma meta-análise tipo dose-resposta, de estudos prospectivos, indica que a ingestão de leite não está associada com a mortalidade todal, mas pode estar inversamente associada com o risco geral de CVD [6]. Confiança nos relatórios recordatórios sobre ingestão dietária apresenta problemas substanciais com a validade, e o desenvolvimento de biomarcadores objetivos para distinguir entre os ácidos graxos derivados da alimentação representa uma grande vantagem; ácido pentadecanóico (15:0), ácido heptadecanóico (17:0) e ácido trans palmitoléico (trans 16:1n-7) podem ser usados como biomarcadores para a ingestão de laticínios. A literatura gerou resultados mistos no que diz respeito ao risco de derrame, mas o mais completo estudo de 2 grandes coortes (Estudo Acompanhamento de Profissionais de Saúde: 51.529 homens; Estudo da Saúde das Enfermeiras: 121.700 mulheres) usando biomarcadores para laticínios (ácidos pentadecanóico, heptadecanóico e trans palmitoléico) reportaram resultados sobre derrame nesta edição do Jornal [7].

Após ajustes relevantes, nenhum associação significativa com o número total de derrames foi vista para qualquer dos 3 biomarcadores. Os resultados foram similares para os subtipos isquêmico e hemorrágico, e os mantiveram-se em análises de sensibilidade.

SFAs também já foram associadas com risco aumentado de diabetes tipo 2, que é um grande fator de risco para CVD. Entretanto, meta-análises de estudos observacionais baseados em recordatórios dietários falharam em mostrar que laticínios aumentam o risco para diabetes tipo 2 [8, 9]. Em uma meta-análise de 17 estudos tipo coorte, houve uma relação modesta mas inversa entre a ingestão total de laticínios, laticínios com pouca gordura e queijo, e o risco de diabetes tipo 2 [9].

Biomarcadores para laticínios e risco de diabetes


Uma análise de coorte foi conduzida baseada na Investigação Européia Prospectiva sobre Câncer e Nutrição (InterAct), um estudo com 12.403 indivíduos com diabetes tipo 2, e ácidos graxos foram medidos nos fosfolipídios plasmáticos [10]. 

Enquanto SFAs de cadeia par estiveram positivamente associados com a incidência de diabetes tipo 2, as SFAs de cadeia ímpar (ácidos pentadecanóico e heptadecanóico) estiveram inversamente associados com diabetes tipo 2 (Taxa de risco: 0.79 e 0.67, respectivamente). Entretanto, enquanto este estudo adiciona mais uma evidência ao efeito protetor dos laticínios contra a diabetes, ele não apresenta nenhum mecanismo nem provê informação sobre se são as SFAs ou outros componentes da matriz alimentar dos laticínios que media os efeitos. Em contraste, também nesta edição do jornal, Santaren et al. [11] confirmam que as concentrações séricas de ácido pentadecanóico estiveram associadas com um risco de 27% de diabetes (Razão de possibilidades: 0.73; P ¼ 0.02), e a associação manteve-se após ajuste por IMC e circunferência da cintura. Isso sugere que o efeito é independente da gordura corporal, uma causa importante da diabetes tipo 2. Santaren et al. também usaram amostras frequentes de testes de tolerância à glicose intravenosos para medir sensibilidade à insulina (SI) e funcionamento de células-beta (Índice de Disposição), e descobriram que concentrações de ácido pentadecanóico estavam positivamente associadas tanto com ambas as medidas em modelos inteiramente ajustados. Estas associações foram substancialmente enfrequecidas pelo ajuste por taxas de obesidade. Os autores corretamente afirma quem o mecanismo subjacente à relação inversa de ácido pentadecanóico e risco de diabetes não é conhecido, e que poderia ser tanto um efeito do ácido graxo ou atribuível a outro componente benéfico dentro da matriz do laticínio.

Conclusões


A totalidade da evidência não suporta que o aumento da gordura saturada de laticínios aumente o risco de doença arterial coronariana ou derrame ou mortalidade por doença cardiovascular. Em constraste, laticínios magros estão claramente associados com risco de diabetes tipo 2 diminuído, e este efeito é parcialmente independente de quaisquer efeitos na perda de gordura corporal. Além disso, laticínios magros não aumentam a gordura corporal, mas tendem a preservar a massa magra corporal. Não há evidência restante que suporte o aconselhamento de saúde pública sobre limitar o consumo de laticínios para evitar CVD e diabetes tipo 2. Queijo e outros laticínio são, na prática, comidas densas em nutrientes que dão a muitas pessoas prazer em suas refeições diárias.

O Departamento de Nutrição, Exercício e Esporte da Universidade de Copenhagem recebe fundos de pesquisa de numerosas companhias alimentícias dinamarquesas e internacionais, incluindo o Conselho Dinamarquês de Pesquisa de Laticínios, Arla Foods SA e a Plataforma Global de Laticínios (GDA). Arne Astrup atua como consultor/membro de comitês de aconselhamento para a GDA, EUA; McCain Foods Ltd., EUA; e McDonald’s, EUA. Ele recebe honorários e patrocínios para participações em congressos, como palestrante, para uma ampla série de assuntos dinamarqueses e internacionais.

Referências


  1. USDA; U.S. Department of Health and Human Services. Dietary guidelines for Americans, 2010. 7th ed. Washington: U.S. Government Printing Office; 2010.
  2. Astrup A, Dyerberg J, Elwood P, Hermansen K, Hu FB, Jakobsen MU, Kok FJ, Krauss RM, Lecerf JM, LeGrand P, et al. The role of reducing intake of SFA in the prevention of cardiovascular disease: where does the evidence stand in 2010? Am J Clin Nutr 2011;93:684–8.
  3. Siri-Tarino PW, Sun Q, Hu FB, Krauss RM. Meta-analysis of prospective cohort studies evaluating the association of saturated fat with cardiovascular disease. Am J Clin Nutr 2010;91:535–46.
  4. Chowdhury R, Warnakula S, Kunutsor S, Crowe F, Ward HA, Johnson L, Franco OH, Butterworth AS, Forouhi NG, Thompson SG, et al. Association of dietary, circulating, and supplement fatty acids with coronary risk: a systematic review and meta-analysis. Ann Intern Med 2014;160:398–406.
  5. Ramsden CE, Zamora D, Leelarthaepin B, Majchrzak-Hong SF, Faurot KR, Suchindran CM, Ringel A, Davis JM, Hibbeln JR. Use of dietary linoleic acid for secondary prevention of coronary heart disease and death: evaluation of recovered data from the Sydney Diet Heart Study and updated meta-analysis. BMJ 2013;346:e8707.
  6. Soedamah-Muthu SS, Ding EL, Al-Delaimy WK, Hu FB, Engberink MF, Willett WC, Geleijnse JM. Milk and dairy consumption and incidence of cardiovascular diseases and all-cause mortality: dose-response meta-analysis of prospective cohort studies. Am J Clin Nutr 2011; 93:158–71.
  7. Yakoob MY, Shi P, Hu FB, Campos H, Rexrode KM, Orav EJ, Willett WC, Mozaffarian D. Circulating biomarkers of dairy fat and risk of incident stroke among US men and women in 2 large prospective cohorts. Am J Clin Nutr 2014;100:1437–47.
  8. Gao D, Ning N, Wang C, Li Q, Meng Z, Liu Y, Li Q. Dairy products consumption and risk of type 2 diabetes: systematic review and dose-response meta-analysis. PLoS ONE 2013;8:e73965.
  9. Aune D, Norat T, Romundstad P, Vatten LJ. Dairy products and the risk of type 2 diabetes: a systematic review and dose-response meta-analysis of cohort studies. Am J Clin Nutr 2013;98:1066–83.
  10. Forouhi NG, Koulman A, Sharp SJ, Imamura F, Kro¨ger J, Schulze MB, Crowe FL, Huerta JM, Guevara M, Beulens JWJ, et al. Differences in the prospective association between individual plasma phospholipid saturated fatty acids and incident type 2 diabetes: the EPIC-InterAct case-cohort study. Lancet Diabetes Endocrinol 2014 Aug 6 (Epub ahead of print; DOI: 10.1016/S2213-8587(14)70146-9).
  11. Santaren ID, Watkins SM, Liese AD, Wagenknecht LE, Rewers MJ, Haffner SM, Lorenzo C, Hanley AJ. Serum pentadecanoic acid (15:0), a short-term marker of dairy food intake, is inversely associated with incident type 2 diabetes and its underlying disorders. Am J Clin Nutr 2014;100:1532–40. 



Obviamente, o fato de o autor receber patrocínio de empresas do ramo (de laticínios) faz ligar um alarme - mas as evidências citadas por ele já são velhas conhecidas de quem acompanha a discussão sobre o papel da gordura saturada na nutrição e saúde humana...



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